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A Renascer Produções Culturais organiza o Seminário Internacional de Crítica Teatral desde 2005 evento que reúne estudantes, profissionais e estudiosos de diferentes formações acadêmicas em um compartilhar de experiência, opinião e conhecimento dos mais diversos países, com o propósito maior de fazer avançar o desenvolvimento do discurso crítico sobre a criação teatral, em todo o mundo. O exercício da crítica de teatro como disciplina e a contribuição para o desenvolvimento das suas bases metodológicas constituem, assim, a prática do Seminário Internacional de Crítica Teatral, levada a cabo por críticos do teatro e uma gama de especialistas nas áreas de conhecimento que entrecruzam comunicação, história, filosofia, arte, literatura e teoria teatral, dentre outras. O Seminário Internacional de Crítica Teatral é um projeto que busca implementar no estado de Pernambuco um espaço permanente de debate sobre a estética teatral contemporânea. A edição 2011 tem como tema o Teatro fora dos Eixos. Todas as atividades desenvolvidas pelo seminário terão como base a discussão das poéticas cênicas que estão se propondo em produzir trabalhos que estão fora do cânone do teatro ocidental.

terça-feira, 6 de dezembro de 2016

O pão e pedra

O dogmatismo político da Cia do Latão

Por: Diego Albuck

Com um espetáculo que problematiza a greve dos metalúrgicos do ABC em 1979, a Cia do Latão traz ao Festival Recife de Teatro Nacional um de seus espetáculos mais emblemáticos – O pão e a pedra.

Um dos pontos da peça se calca na Teologia da Libertação, uma corrente teológica que nasce na América Latina no final da década de 1960, onde o catolicismo combatia veementemente a desigualdade social e o incentivo à luta de classes. Por conta dessa ideologia, a igreja se tornava uma das principais apoiadoras aos movimentos sindicais e grevistas, cedendo seu espaço para sediar reuniões políticas.

É com esta realidade de pobreza e exclusão que acompanhamos metalúrgicos da fábrica Volkswagen que em troca de salários baixos vendiam seu trabalho para ter uma melhor qualidade de vida. Como forma de protesto eles organizaram uma greve sindical em São Bernardo do Campo e com isso enfrentaram vários percalços como a ditadura, a mídia e todas as dificuldades afrontadas pela paralisação.

Na peleja pela sua sobrevivência, Joana, mulher, mãe, solteira, operária se disfarça de homem para tentar melhorar a sua vida e a do seu filho. A personagem se coloca o tempo todo se questionando sobre o porquê de lutar nesta greve, visto que, já tinha participado de tantas outras e não tinha visto nenhuma mudança significativa. A operária também questiona a situação feminina no setor fabril, principalmente a diferença de salários entre homens e mulheres.

Esse embate de gênero é um dos pontos mais cruciais na peça, visto que além da insatisfação geral dos trabalhadores, temos também o discurso feminista que revoga seu direito igualitário
aos dos homens. Vemos mulheres resistentes que lutam ora lado a lado, ora contar seus companheiros nessa luta de classes.

A partir desses embates, Joana resolver ser João Batista, um operário que logo ganha à confiança de seus companheiros. É interessante ver que além de mulher operária, Joana é mãe e vemos ali uma mãe disposta a tudo a recuperar seu filho e na perspectiva de melhorar a sua vida. É importante salientar a escolha do nome João Batista que, logo, nos fez remeter ao profeta considerado o precursor de Jesus Cristo.

A peça traça grandes reflexões acerca da resistência sindical abordando desde o enfrentamento de classe assim como as contradições de gêneros que podem ser vistas nas cenas dos vestiários masculino e feminino. Os pensamentos de homens e mulheres se alinham na perspectiva de uma melhor qualidade de vida e de um aumento salarial. E Joana/João transita por todas as questões e seus contrassensos.

Um dos pontos negativos na dramaturgia é o romance clichê entre Joana e Lucílio, o Fúria Santa que, no decorrer da narrativa ganha mais dimensão do que o protagonismo feminino imposto pela personagem naquele ambiente sindical. É um pesar vemos definhar um personagem com um discurso tão forte e arrebatador se perder em bobagens juvenis, estas que se estendem até o final do espetáculo, fazendo a peça ficar cansativa e sem graça.

Além do novo sindicalismo e a igreja progressista, o movimento estudantil de esquerda também se engaja nessa luta pela democratização do país. Se hoje o Partido dos Trabalhadores (PT) está sofrendo um declínio político, no espetáculo vemos o seu surgimento na ascensão desse novo sindicalismo, principalmente na presença ilustre de seu líder mais emblemático o ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva.

É nesse quesito que a peça tem seus pontos mais fracos, quando vai abordar sobre o líder petista e seus discursos. A narrativa aparenta não querer parecer panfletária e tenta se desculpar o
tempo todo pelo discurso que traz. É notório o acanhamento do espetáculo em falar abertamente sobre a importância do movimento esquerdista na história do país por temer alguma represália.

Ao invés de aludir que após as greves, houve um enfraquecimento do regime militar, bem como a importância de Lula para o movimento sindical e suas conquistas como a garantia dos direitos dos trabalhadores rurais, o direito de greve, a redução de jornada de trabalho, o seguro-desemprego, dentre outras, o espetáculo se perde em músicas, festas e romances bestiais fazendo com o espetáculo fique cansativo e chato.

Em Tempos de pedra para comer...

Em tempos de pedra para comer, o teatro oferece o pão



Por Vinícius Vieira

Professor e jornalista



Clima de desalienação e resistência dão o tom ao novo espetáculo da Companhia do Latão, “O pão e a pedra”. A peça foi encenada dentro da programação do Festival Recife do Teatro Nacional, de 23 a 27 de novembro, no Teatro Hermilo Borba Filho.



Os momentos de greves dos trabalhadores metalúrgicos do ABC paulista no fim da década de 70, o novo movimento sindicalista, a interferência da Igreja, a mobilização estudantil e o surgimento do líder sindical Luiz Inácio Lula da Silva são revisitados por meio da escrita cênica épica. Aliás, os pressupostos bretchianos são afirmados com a premissa de que o público não pode perder sua criticidade perante os conflitos retratados. O panorama de democratização e busca de direitos dialoga bastante com o atual cenário de inquietação política nacional, o que levou a plateia a manter os olhos vidrados na encenação e aplaudir calorosamente o trabalho após quase três horas de apresentação.



As relações de gênero e as injustiças cometidas pelas questões trabalhistas machistas também são refletidas em “O pão e a pedra”. Joana, uma trabalhadora metalúrgica, se traveste de homem para receber melhor salário. Essa escolha possibilita um salto positivo em sua vida e ecoa o absurdo da inferiorização da mulher no mercado profissional, na sociedade. A personagem ganha espaço em nosso imaginário por encontrarmos nela uma válvula que evoca tantas outras figuras femininas as quais se desdobram para garantir a sustentação da casa e conseguir educar os filhos. Somos assim, envolvidos em um jogo de aproximação devido a humanização das relações observadas, mas também somos convidados a ter um olhar atento e crítico às contradições, aos acontecimentos históricos descortinados pela teatralidade.



Sérgio de Carvalho é quem assina a dramaturgia e a direção da obra a qual enveredou pelos caminhos da criação coletiva para expor as contradições sociais. Aquilo que foi posto em cena tem um quê de documental com ressonância ficcional entre as figuras exibidas.



Na encenação, o ex-presidente Lula não é fisicalizado pela presença de um ator, mas ganha espaço a partir da gravação de seu discurso quanto presidente do sindicato dos metalúrgicos.



Em cena, os atores e atrizes cantam para explicar ou contextualizar as situações compartilhadas e desempenham essa ação com qualidade técnica. Entretanto, as vozes faladas, em alguns momentos, poderiam alcançar maior volume e intensidade. A peça conta com atores bastante habilidosos, porém, a direção não consegue atingir uma unidade interpretativa, o que torna o elenco desnivelado.



São múltiplos e profundos os signos postos em cena. O sexo entre dois namorados no carro e a fala nada carinhosa da mulher ao afirmar “você só quer me foder”, ou a imagem cênica de um garoto sentado em uma cruz, deflagram uma série de sentidos os quais povoam nossas mentes dias após a apresentação. São construções muito bem elaboradas e assertivas que reiteram a necessidade de estranhamento dos fatos, das coisas.



A peça convida a ir além das superfícies, das decodificações óbvias e incita na plateia o ímpeto de transformação. Em tempos difíceis, fincados na escolha entre o pão ou a pedra para comer, fica a certeza: o Latão faz jus a verve do Teatro Político.

NÓS

Espetáculo ‘Nós’ é sintoma e remédio para o mal estar da pós-modernidade
Por Vinícius Vieira
Professor e jornalista

A incapacidade do homem pós-moderno de lidar com o que há de humano em si, com o encontro, a alteridade compõe o ponto nevrálgico do espetáculo “Nós”, do imponente Grupo Galpão (MG). Em zona de conflito cíclico, a condição humana é desenhada, na peça, em contexto de repetições, ruídos, interrupções, incapacidade de ser e impossibilidade de sentir o outro. O trabalho foi apresentado dentro da programação do 18° Festival Recife do Teatro Nacional, na quarta (23) e quinta (24), respectivamente, no Teatro Luiz Mendonça.

O discurso levado à cena é polifônico, com referências filosóficas, da literatura russa, da música, com fortes influências dos temas emergentes que assolam a sociedade: a violência, as catástrofes, o terrorismo, as intempéries sociais como o preconceito. Os enunciados partem de uma conversa cotidiana em uma cozinha – espaço da casa, esfera da intimidade, socialmente convencionado como lócus de partilha, comunhão. Mas rapidamente os enlaces começam a se esfacelar, pois as figuras apresentadas estão aprisionadas na individualidade. Esse ponto de partida possibilita ao espectador projetar-se na cena, despertando inquietações e angústias no observador.

As ações são postas em um espaço cênico fluido o qual se transforma em territórios múltiplos e instáveis, que partem da esfera local com ressonância no global. O caótico e a provisoriedade são fisicalizados na cenografia funcional de Marcelo Alvarenga, a qual possibilita aproximação e distanciamento do fundo do palco, deslocamento de porta, criação de rampa que conduz o homem a ele mesmo – ao fundo, um espelho revela a imagem de quem o observa. É como se a cenografia tentasse nos salvar, nos lembrar, bradar nossa potencialidade para o encontro com nós mesmos e com as demais pessoas.

A canção “Lama” entrecorta as falas dos atores e é usada na encenação como recurso poético potente para questionar o que somos em tom boêmio e jocoso, remetendo ao clima melancólico dos finais de festa (chegamos ao fim da humanidade e só nos resta lamentar?). A música é cantada e tocada pelos próprios atores em ações cômicas, nos constrangendo divertidamente com o ridículo daquilo que escolhemos para viver. O cômico é amplificado pelas ações do elenco que se movimenta, anda, para em dissonante desespero.

A sonoplastia ganha prominência na orquestração cênica ao acentuar o sentimento de solidão e abandono reproduzindo, a partir da fala dos atores, ecos, sublinhando momentos pontuais da fala, reverberando o mal estar social, explodindo em nós bombas que aterrorizam, desvelando o ponto no qual chegamos e aquilo que, talvez, ainda poderemos ser. O desenho de som no espetáculo é posto entre o registro eletrônico e o ao vivo.

A dramaturgia de Marcio Abreu – que também assina a direção – e Eduardo Moreira é dispare, fragmentada, sem linearidade. Nela, o diálogo está em crise. Todos falam sem ouvir e sem serem ouvidos. Lançam perguntas, mas permanecem com a ausência de respostas. Estão agrupados na solidão da existência e daquilo que fizeram dela. Em cena, as personagens não são apresentadas em contornos psicológicos que justifiquem suas ações. Embora as tensões provenientes das relações humanas decadentes, o conflito exposto é resultado da relação do homem com o mundo, as estruturas de poder que o afeta, mas que são criadas e mantidas por ele. Aliás, o texto apresentado desafia o modelo clássico do drama e surge diretamente da cena, de improvisações realizadas pelos atores na sala de ensaio, procedimento influenciado pelas criações coletivas e processos colaborativos com forte presença nas décadas de 1970 e 1990.

A encenação concebe com sofisticação imagens cênicas de grande impacto e múltiplos sentidos. A sopa, preparada pelos atores durante a peça e compartilhada com a plateia, surge como solução para requentar a nossa humanidade em contexto congelante. Os limões jogados no ar revelam a acidez proveniente do âmbito social no qual afetamos e somos afetados. Eles são transformados em bebidas e distribuídos ao público. Mais uma vez, a solução apresentada parece ser o contato com o outro.  Falando do que se come e bebe, é impossível não destacar os cheiros que a cena exala: de verduras, legumes, o forte odor do alho, da sopa de legumes em cozimento.

E em meio ao panorama caótico, de incertezas e liquidez, do medo de sentir medo - o qual cria barreiras nas relações interpessoais – de preconceito às minorias e a precarização do ser artista, não adianta clamar pelas divindades. Chamar os profetas em busca de remédio para o mal que nos assola parece não abarcar a complexidade de nossas ações. Isso já não é o bastante.  

O pronome pessoal que intitula a obra responde quem pode nos despertar e desviar dos vícios e letargias, “Nós”. Para o Galpão, somos o messias de nós mesmos e o teatro torna-se o templo que nos (re)liga. O discurso parece ter convencido a plateia que subiu ao palco do Luiz Mendonça, nesta quinta-feira, ou dançou de onde estava para reaprender com o outro como se reconectar, restabelecer laços. Foi fácil: olho no olho, sorriso no rosto enquanto o corpo se mexia ao som de I want to break free, do grupo britânico Queen. No palco, agora pista de dança, muitos abraços apertados - até romantismo entre um casal com direito a beijo na boca teve. Era visível os olhares fascinados com a coletividade. O Galpão conseguiu, de fato, arrebatar o Recife e oferecer, com muita beleza e dignidade, aquilo que o teatro é por essência: comunhão.



Assista ao teaser do espetáculo 'Nós': https://vimeo.com/161677260 (se possível, inserir o vídeo na publicação)

DESLIGA!

DESLIGA!
João Denys
Apontamentos ao espetáculo MEDEAponto visto no Teatro Hermilo Borba Filho, em 21 de novembro de 2016, no 18º Festival Recife do Teatro Nacional, protagonizado por Augusta Ferraz.
Pare de chorar João Denys. A furtiva lágrima fervente sulca o rosto, perfura a pele; é brasa movente. Pare! Eis o ponto. Pronto: MEDEAponto, não! MEDEAponto sim! Vai acender um incenso? Vai beber? Vai ofertar vinho ou cachaça envenenada ao maldito público? O deserto no palco desértico. Desligue-se! O celular de Medea é antigo como a tragédia de Eurípides. Uma mulher traidora que amarga a traição. Que bela poesia infinitamente reprocessada, amassada, fustigada, dilacerada e mesmo assim mantendo seu fulgor, sua boniteza. Medea não representa a mulher cidadã porque mulher antes de ser feminista e exarar um discurso feminista é demasiadamente humana e, como macho, fêmea, transexual, gay ou lésbica, sente o desejo a lhe jogar para o chão como papel prateado do chocolate de Fernando Pessoa. Ela deita tudo a perder: identidade, pertencimento, cidadania. Portuguesa Medea, ibérica e monstruosa, bicha invertida capaz de matar e esquartejar por paixão pelo estrangeiro, a augusta Medea invade as encruzilhadas do deserto cênico com o corpo em brasa, trêmula de paixão pasoliniana, de quem assimilou criativamente a potência criadora e enlouquecida de Maria Callas. Cada desmaio é um filme ou o filme do mestre dos desdentados e dos michês italianos, da política dos corpos e do mundo, atos a nos consumir com suas forças jasônicas, com o prazer de viver, de copular.
Eis o ponto de candomblé que o mago Marcondes Lima nos mostra em retângulos e círculos de luz-caminho e um vazio cênico de doer nos ossos. Nossos ossos? Sei lá! Vi um modelo de fêmea apaixonada, logo, doente, dorida, vindo em minha direção com a força dos vulcões a dizer palavras reinventadas de um poeta grego mais mulher que seus predecessores:
Ésquilo e Sófocles. Mulher reclamadeira, terremoto permanente que acusa a ingratidão, a traição e esquece a mais imperdoável de suas traições cometida por uma desmesurada paixão: a traição aos ancestrais, à pátria, à terra, aos seres de sua laia em nome do diferente, do bizarro. Medea é matadora profissional a serviço do gozo ao ver o boy de seus sonhos e literalmente desmaiar diante desta visão. 
Desligue-se deste mundo. Não adiante reclamar que as mulheres não têm direitos. Que seu lugar é a alcova perfumada e os feitiços que só as feiticeiras detêm. Desligue essa droga de celular. O meu não filma. Você não sabe que vai roubar minha alma com essa luzinha maldita diante dos meus elipsoidais, dos meus plano-convexos, dos meus setlights, da minha rotunda negra? Desligue essa porcaria, menina. Você não sabe que eu não admito filmagem do meu espetáculo?
Uma deusa em cena a desafiar os humildes espectadores.  Lá vem ela no deserto com suas vestes-filhos e sua burca-marido a nos dizer do talento poético de Medea e das capacidades de nos enfeitiçar que só uma Augusta pode ter com sua carne trêmula, com seu corpo escondido do sol, toda lua, toda mulher, toda hemorragia a mover-se num ritmo que qualquer aprendiz de feiticeira destruiria. Carrega no peito um celular arcaico, incapaz de localizar a traição política de seu amado, mais jovem e cheio de tesão vazio (aquele tesão que fode as pedras). Desgraçada macumbeira a cantar pontos portugueses ou, se quiserem, fados, que bem poderiam ser pontos de outa nação Nagô ou Jeje, Medeaugusta é força da natureza em cena, ligada em tudo e em cada movimento do público, em cada piscar de olhos. Ela segue sua sede ancestral de um deserto de teatro e de amor. O deserto desta terra queimada de cana e tão só ou sacana ou só cena. Sá Nanas, Sá e Guarabyara, doce e salgada e enlameada, mas vazia de outras paisagens senão o amor ao teatro e àquilo que ainda lhe faz viver, pois a morte augustiniana é ser só no deserto do Saara, contanto que litros transparentes de água viva hidratem o seu aparelho fonador e o seu espírito de afilhada de Apolo e Dioniso. Tudo concorre para o seu diálogo com o gênio do cinema italiano e sua musa norte-americana-grega Maria Callas. Um espetáculo no deserto da alma e das quedas da Diva. Uma macumba nos tijolos de um bofe enlouquecido diante da vingança mais perversa e eficaz.
Destruo sua obra, você que é só imagem projetada sobre minhas paredes, as paredes de Hermilo Borba Filho, mas que antes era do meu também deus Apolo. Espaço Apolo contaminado pela embriaguez dionisíaca deste devasso dos Palmares e da melopeia ineficaz de um Bandeira 2. Toca o telefone. Não atendo. Ele é uma horcrux; um objeto enfeitiçado semelhante ao projetor de imagens jasônicas dos anos 1960. Super-oito movendo-se no espaço? Não fale comigo.
A carne treme. É trêmula como as carnes provocadas por Almodóvar. Não é madame Callas que representa e canta. São todas as mulheres traídas e revoltadas, capazes, só elas sabem, de saborear o prato frio da vingança como quem come feijoada gelada com arroz, também gelado, na madrugada fria depois da farra, depois de toda a psicanálise selvagem de botequim. Será Amália Rodrigues, será Bibi Ferreira, será Maísa? Serão todas as mulheres traídas/traidoras? Serão os homens todos traídos/traidores? Medea é mulher trans ou homem trans? É lésbica ou gay ou tudo isso e mãe parideira?  Medea avança e o texto de 431 a. C. nos desliga da miséria obscura deste mundo, agora, para nos revelar a miséria iluminadora da poesia cênica, revigoradora da beleza e do poder do grito que ainda hoje nos imobiliza em nossos toscos lugares de testemunhas, espectadores, teóricos do olhar. Somos cúmplices da augusta aparição de uma atriz que devora o público e acredita que esse é seu real poder antropofágico. Um empoderamento imperial, assustador, contemporâneo, pós-colonial, pós-tudo, pós-oprimido que em sua performance autossuficiente imita Téspis a manipular todas as máscaras.  
Pare! Não me mate. Não me devore com seu smartphone. Desligue-se do mundo. Aqui é outro Galaxy. Acredite nos meus focos, nos meus ebós, no meu catimbó, no meu sangue sempre vivo. Beba da pequena garrafa de vinho antigo e venenoso servido em minúsculas taças de plástico. Pode quebrar! Meus colares nordestinos de esferas de isopor revestidas de tecido nunca serão aqueles com os quais dialogo e que o poeta assassinado barbaramente adornou o colo lírico de La Divina do milionário Aristóteles. Aqui o sol denuncia a ausência de manutenção dos astros; aqui o deserto é de tábuas corridas, também a abrigar, como a areia, pestilentos escorpiões; aqui as paredes de tijolos se desmancham e os arrecifes da Grécia nordestina impedem que o mar revolucionador avance em seus domínios criativos e destrutivos. Os tubarões fazem a festa do capitalismo devastador em seu mais perverso estágio: invisível, criptografado, das tarjas magnéticas, das senhas, das dentadas espirituais. O que fizeste da tragédia, Eurípides, príncipe shakespeariano da antiguidade grega?
Guilhermina bebe, o tempo todo, a mais límpida água do seu cantar e do seu domínio quase perfeito da arte de nos iludir. E sofremos e admiramos o seu martírio. Lá vem ela debaixo da burca da mulher, vítima dos homens e dos seus embustes. Lá vai ela circundando o útero que não gerou senão personagens. Lá vem ela me vendo anotar para criar algo a partir do preciso domínio do tempo que só ela possui. Seus filhos são mais vivos que os viventes. Sua dor maior que todos os partos. E, nas encruzilhadas dos desertos da alma, traindo todas as proles e laços familiares e culturais, esquartejando irmão e assassinando filhos, foca a pequena menina que tenta sequestrar o instante, criar provas de sua atuação e, entre dentes, diante da crítica, diante da testemunha, brada numa perfeita elipse ateniense: desliga!
 Madalena, Recife, 05 de dezembro de 2016.