DESLIGA!
João Denys
Apontamentos ao
espetáculo MEDEAponto visto no Teatro Hermilo Borba Filho, em 21 de novembro de
2016, no 18º Festival Recife do Teatro Nacional, protagonizado por Augusta
Ferraz.
Pare de chorar
João Denys. A furtiva lágrima fervente sulca o rosto, perfura a pele; é brasa movente.
Pare! Eis o ponto. Pronto: MEDEAponto, não! MEDEAponto sim! Vai acender um
incenso? Vai beber? Vai ofertar vinho ou cachaça envenenada ao maldito público?
O deserto no palco desértico. Desligue-se! O celular de Medea é antigo como a
tragédia de Eurípides. Uma mulher traidora que amarga a traição. Que bela
poesia infinitamente reprocessada, amassada, fustigada, dilacerada e mesmo
assim mantendo seu fulgor, sua boniteza. Medea não representa a mulher cidadã
porque mulher antes de ser feminista e exarar um discurso feminista é
demasiadamente humana e, como macho, fêmea, transexual, gay ou lésbica, sente o
desejo a lhe jogar para o chão como papel prateado do chocolate de Fernando
Pessoa. Ela deita tudo a perder: identidade, pertencimento, cidadania. Portuguesa
Medea, ibérica e monstruosa, bicha invertida capaz de matar e esquartejar por
paixão pelo estrangeiro, a augusta Medea invade as encruzilhadas do deserto cênico
com o corpo em brasa, trêmula de paixão pasoliniana, de quem assimilou
criativamente a potência criadora e enlouquecida de Maria Callas. Cada desmaio
é um filme ou o filme do mestre dos desdentados e dos michês italianos, da
política dos corpos e do mundo, atos a nos consumir com suas forças jasônicas,
com o prazer de viver, de copular.
Eis o ponto de
candomblé que o mago Marcondes Lima nos mostra em retângulos e círculos de luz-caminho
e um vazio cênico de doer nos ossos. Nossos ossos? Sei lá! Vi um modelo de
fêmea apaixonada, logo, doente, dorida, vindo em minha direção com a força dos
vulcões a dizer palavras reinventadas de um poeta grego mais mulher que seus
predecessores:
Ésquilo e Sófocles. Mulher reclamadeira, terremoto permanente que acusa a ingratidão, a traição e esquece a mais imperdoável de suas traições cometida por uma desmesurada paixão: a traição aos ancestrais, à pátria, à terra, aos seres de sua laia em nome do diferente, do bizarro. Medea é matadora profissional a serviço do gozo ao ver o boy de seus sonhos e literalmente desmaiar diante desta visão.
Ésquilo e Sófocles. Mulher reclamadeira, terremoto permanente que acusa a ingratidão, a traição e esquece a mais imperdoável de suas traições cometida por uma desmesurada paixão: a traição aos ancestrais, à pátria, à terra, aos seres de sua laia em nome do diferente, do bizarro. Medea é matadora profissional a serviço do gozo ao ver o boy de seus sonhos e literalmente desmaiar diante desta visão.
Desligue-se
deste mundo. Não adiante reclamar que as mulheres não têm direitos. Que seu
lugar é a alcova perfumada e os feitiços que só as feiticeiras detêm. Desligue
essa droga de celular. O meu não filma. Você não sabe que vai roubar minha alma
com essa luzinha maldita diante dos meus elipsoidais, dos meus plano-convexos, dos
meus setlights, da minha rotunda
negra? Desligue essa porcaria, menina. Você não sabe que eu não admito filmagem
do meu espetáculo?
Uma deusa em
cena a desafiar os humildes espectadores.
Lá vem ela no deserto com suas vestes-filhos e sua burca-marido a nos dizer
do talento poético de Medea e das capacidades de nos enfeitiçar que só uma
Augusta pode ter com sua carne trêmula, com seu corpo escondido do sol, toda
lua, toda mulher, toda hemorragia a mover-se num ritmo que qualquer aprendiz de
feiticeira destruiria. Carrega no peito um celular arcaico, incapaz de
localizar a traição política de seu amado, mais jovem e cheio de tesão vazio
(aquele tesão que fode as pedras). Desgraçada macumbeira a cantar pontos
portugueses ou, se quiserem, fados, que bem poderiam ser pontos de outa nação
Nagô ou Jeje, Medeaugusta é força da natureza em cena, ligada em tudo e em cada
movimento do público, em cada piscar de olhos. Ela segue sua sede ancestral de
um deserto de teatro e de amor. O deserto desta terra queimada de cana e tão só
ou sacana ou só cena. Sá Nanas, Sá e Guarabyara, doce e salgada e enlameada,
mas vazia de outras paisagens senão o amor ao teatro e àquilo que ainda lhe faz
viver, pois a morte augustiniana é ser só no deserto do Saara, contanto que
litros transparentes de água viva hidratem o seu aparelho fonador e o seu
espírito de afilhada de Apolo e Dioniso. Tudo concorre para o seu diálogo com o
gênio do cinema italiano e sua musa norte-americana-grega Maria Callas. Um
espetáculo no deserto da alma e das quedas da Diva. Uma macumba nos tijolos de
um bofe enlouquecido diante da vingança mais perversa e eficaz.
Destruo sua
obra, você que é só imagem projetada sobre minhas paredes, as paredes de
Hermilo Borba Filho, mas que antes era do meu também deus Apolo. Espaço Apolo
contaminado pela embriaguez dionisíaca deste devasso dos Palmares e da melopeia
ineficaz de um Bandeira 2. Toca o telefone. Não atendo. Ele é uma horcrux; um
objeto enfeitiçado semelhante ao projetor de imagens jasônicas dos anos 1960.
Super-oito movendo-se no espaço? Não fale comigo.
A carne treme. É
trêmula como as carnes provocadas por Almodóvar. Não é madame Callas que
representa e canta. São todas as mulheres traídas e revoltadas, capazes, só
elas sabem, de saborear o prato frio da vingança como quem come feijoada gelada
com arroz, também gelado, na madrugada fria depois da farra, depois de toda a
psicanálise selvagem de botequim. Será Amália Rodrigues, será Bibi Ferreira,
será Maísa? Serão todas as mulheres traídas/traidoras? Serão os homens todos
traídos/traidores? Medea é mulher trans ou homem trans? É lésbica ou gay ou
tudo isso e mãe parideira? Medea avança
e o texto de 431 a. C. nos desliga da miséria obscura deste mundo, agora, para
nos revelar a miséria iluminadora da poesia cênica, revigoradora da beleza e do
poder do grito que ainda hoje nos imobiliza em nossos toscos lugares de
testemunhas, espectadores, teóricos do olhar. Somos cúmplices da augusta
aparição de uma atriz que devora o público e acredita que esse é seu real poder
antropofágico. Um empoderamento imperial, assustador, contemporâneo,
pós-colonial, pós-tudo, pós-oprimido que em sua performance autossuficiente
imita Téspis a manipular todas as máscaras.
Pare! Não me mate.
Não me devore com seu smartphone. Desligue-se do mundo. Aqui é outro Galaxy. Acredite
nos meus focos, nos meus ebós, no meu catimbó, no meu sangue sempre vivo. Beba
da pequena garrafa de vinho antigo e venenoso servido em minúsculas taças de
plástico. Pode quebrar! Meus colares nordestinos de esferas de isopor
revestidas de tecido nunca serão aqueles com os quais dialogo e que o poeta assassinado
barbaramente adornou o colo lírico de La
Divina do milionário Aristóteles. Aqui o sol denuncia a ausência de
manutenção dos astros; aqui o deserto é de tábuas corridas, também a abrigar,
como a areia, pestilentos escorpiões; aqui as paredes de tijolos se desmancham
e os arrecifes da Grécia nordestina impedem que o mar revolucionador avance em
seus domínios criativos e destrutivos. Os tubarões fazem a festa do capitalismo
devastador em seu mais perverso estágio: invisível, criptografado, das tarjas
magnéticas, das senhas, das dentadas espirituais. O que fizeste da tragédia,
Eurípides, príncipe shakespeariano da antiguidade grega?
Guilhermina bebe,
o tempo todo, a mais límpida água do seu cantar e do seu domínio quase perfeito
da arte de nos iludir. E sofremos e admiramos o seu martírio. Lá vem ela
debaixo da burca da mulher, vítima dos homens e dos seus embustes. Lá vai ela
circundando o útero que não gerou senão personagens. Lá vem ela me vendo anotar
para criar algo a partir do preciso domínio do tempo que só ela possui. Seus
filhos são mais vivos que os viventes. Sua dor maior que todos os partos. E,
nas encruzilhadas dos desertos da alma, traindo todas as proles e laços
familiares e culturais, esquartejando irmão e assassinando filhos, foca a
pequena menina que tenta sequestrar o instante, criar provas de sua atuação e,
entre dentes, diante da crítica, diante da testemunha, brada numa perfeita
elipse ateniense: desliga!
Texto absurdamente maravilhoso do sempre genial Mestre Denys amado. Concordo plenamente com tudo que foi dito. Augusta medeaPONTO Ferraz é definitivamente arrebatadora, vigorosa, hipnotizante.
ResponderExcluirTodos que gostam e dizem fazer teatro precisam ver Augusta em cena.
O mundo precisa ver Augusta atuar, depois disso, a transformação estará estabelecida, nada será como antes.