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A Renascer Produções Culturais organiza o Seminário Internacional de Crítica Teatral desde 2005 evento que reúne estudantes, profissionais e estudiosos de diferentes formações acadêmicas em um compartilhar de experiência, opinião e conhecimento dos mais diversos países, com o propósito maior de fazer avançar o desenvolvimento do discurso crítico sobre a criação teatral, em todo o mundo. O exercício da crítica de teatro como disciplina e a contribuição para o desenvolvimento das suas bases metodológicas constituem, assim, a prática do Seminário Internacional de Crítica Teatral, levada a cabo por críticos do teatro e uma gama de especialistas nas áreas de conhecimento que entrecruzam comunicação, história, filosofia, arte, literatura e teoria teatral, dentre outras. O Seminário Internacional de Crítica Teatral é um projeto que busca implementar no estado de Pernambuco um espaço permanente de debate sobre a estética teatral contemporânea. A edição 2011 tem como tema o Teatro fora dos Eixos. Todas as atividades desenvolvidas pelo seminário terão como base a discussão das poéticas cênicas que estão se propondo em produzir trabalhos que estão fora do cânone do teatro ocidental.

terça-feira, 6 de dezembro de 2016

DESLIGA!

DESLIGA!
João Denys
Apontamentos ao espetáculo MEDEAponto visto no Teatro Hermilo Borba Filho, em 21 de novembro de 2016, no 18º Festival Recife do Teatro Nacional, protagonizado por Augusta Ferraz.
Pare de chorar João Denys. A furtiva lágrima fervente sulca o rosto, perfura a pele; é brasa movente. Pare! Eis o ponto. Pronto: MEDEAponto, não! MEDEAponto sim! Vai acender um incenso? Vai beber? Vai ofertar vinho ou cachaça envenenada ao maldito público? O deserto no palco desértico. Desligue-se! O celular de Medea é antigo como a tragédia de Eurípides. Uma mulher traidora que amarga a traição. Que bela poesia infinitamente reprocessada, amassada, fustigada, dilacerada e mesmo assim mantendo seu fulgor, sua boniteza. Medea não representa a mulher cidadã porque mulher antes de ser feminista e exarar um discurso feminista é demasiadamente humana e, como macho, fêmea, transexual, gay ou lésbica, sente o desejo a lhe jogar para o chão como papel prateado do chocolate de Fernando Pessoa. Ela deita tudo a perder: identidade, pertencimento, cidadania. Portuguesa Medea, ibérica e monstruosa, bicha invertida capaz de matar e esquartejar por paixão pelo estrangeiro, a augusta Medea invade as encruzilhadas do deserto cênico com o corpo em brasa, trêmula de paixão pasoliniana, de quem assimilou criativamente a potência criadora e enlouquecida de Maria Callas. Cada desmaio é um filme ou o filme do mestre dos desdentados e dos michês italianos, da política dos corpos e do mundo, atos a nos consumir com suas forças jasônicas, com o prazer de viver, de copular.
Eis o ponto de candomblé que o mago Marcondes Lima nos mostra em retângulos e círculos de luz-caminho e um vazio cênico de doer nos ossos. Nossos ossos? Sei lá! Vi um modelo de fêmea apaixonada, logo, doente, dorida, vindo em minha direção com a força dos vulcões a dizer palavras reinventadas de um poeta grego mais mulher que seus predecessores:
Ésquilo e Sófocles. Mulher reclamadeira, terremoto permanente que acusa a ingratidão, a traição e esquece a mais imperdoável de suas traições cometida por uma desmesurada paixão: a traição aos ancestrais, à pátria, à terra, aos seres de sua laia em nome do diferente, do bizarro. Medea é matadora profissional a serviço do gozo ao ver o boy de seus sonhos e literalmente desmaiar diante desta visão. 
Desligue-se deste mundo. Não adiante reclamar que as mulheres não têm direitos. Que seu lugar é a alcova perfumada e os feitiços que só as feiticeiras detêm. Desligue essa droga de celular. O meu não filma. Você não sabe que vai roubar minha alma com essa luzinha maldita diante dos meus elipsoidais, dos meus plano-convexos, dos meus setlights, da minha rotunda negra? Desligue essa porcaria, menina. Você não sabe que eu não admito filmagem do meu espetáculo?
Uma deusa em cena a desafiar os humildes espectadores.  Lá vem ela no deserto com suas vestes-filhos e sua burca-marido a nos dizer do talento poético de Medea e das capacidades de nos enfeitiçar que só uma Augusta pode ter com sua carne trêmula, com seu corpo escondido do sol, toda lua, toda mulher, toda hemorragia a mover-se num ritmo que qualquer aprendiz de feiticeira destruiria. Carrega no peito um celular arcaico, incapaz de localizar a traição política de seu amado, mais jovem e cheio de tesão vazio (aquele tesão que fode as pedras). Desgraçada macumbeira a cantar pontos portugueses ou, se quiserem, fados, que bem poderiam ser pontos de outa nação Nagô ou Jeje, Medeaugusta é força da natureza em cena, ligada em tudo e em cada movimento do público, em cada piscar de olhos. Ela segue sua sede ancestral de um deserto de teatro e de amor. O deserto desta terra queimada de cana e tão só ou sacana ou só cena. Sá Nanas, Sá e Guarabyara, doce e salgada e enlameada, mas vazia de outras paisagens senão o amor ao teatro e àquilo que ainda lhe faz viver, pois a morte augustiniana é ser só no deserto do Saara, contanto que litros transparentes de água viva hidratem o seu aparelho fonador e o seu espírito de afilhada de Apolo e Dioniso. Tudo concorre para o seu diálogo com o gênio do cinema italiano e sua musa norte-americana-grega Maria Callas. Um espetáculo no deserto da alma e das quedas da Diva. Uma macumba nos tijolos de um bofe enlouquecido diante da vingança mais perversa e eficaz.
Destruo sua obra, você que é só imagem projetada sobre minhas paredes, as paredes de Hermilo Borba Filho, mas que antes era do meu também deus Apolo. Espaço Apolo contaminado pela embriaguez dionisíaca deste devasso dos Palmares e da melopeia ineficaz de um Bandeira 2. Toca o telefone. Não atendo. Ele é uma horcrux; um objeto enfeitiçado semelhante ao projetor de imagens jasônicas dos anos 1960. Super-oito movendo-se no espaço? Não fale comigo.
A carne treme. É trêmula como as carnes provocadas por Almodóvar. Não é madame Callas que representa e canta. São todas as mulheres traídas e revoltadas, capazes, só elas sabem, de saborear o prato frio da vingança como quem come feijoada gelada com arroz, também gelado, na madrugada fria depois da farra, depois de toda a psicanálise selvagem de botequim. Será Amália Rodrigues, será Bibi Ferreira, será Maísa? Serão todas as mulheres traídas/traidoras? Serão os homens todos traídos/traidores? Medea é mulher trans ou homem trans? É lésbica ou gay ou tudo isso e mãe parideira?  Medea avança e o texto de 431 a. C. nos desliga da miséria obscura deste mundo, agora, para nos revelar a miséria iluminadora da poesia cênica, revigoradora da beleza e do poder do grito que ainda hoje nos imobiliza em nossos toscos lugares de testemunhas, espectadores, teóricos do olhar. Somos cúmplices da augusta aparição de uma atriz que devora o público e acredita que esse é seu real poder antropofágico. Um empoderamento imperial, assustador, contemporâneo, pós-colonial, pós-tudo, pós-oprimido que em sua performance autossuficiente imita Téspis a manipular todas as máscaras.  
Pare! Não me mate. Não me devore com seu smartphone. Desligue-se do mundo. Aqui é outro Galaxy. Acredite nos meus focos, nos meus ebós, no meu catimbó, no meu sangue sempre vivo. Beba da pequena garrafa de vinho antigo e venenoso servido em minúsculas taças de plástico. Pode quebrar! Meus colares nordestinos de esferas de isopor revestidas de tecido nunca serão aqueles com os quais dialogo e que o poeta assassinado barbaramente adornou o colo lírico de La Divina do milionário Aristóteles. Aqui o sol denuncia a ausência de manutenção dos astros; aqui o deserto é de tábuas corridas, também a abrigar, como a areia, pestilentos escorpiões; aqui as paredes de tijolos se desmancham e os arrecifes da Grécia nordestina impedem que o mar revolucionador avance em seus domínios criativos e destrutivos. Os tubarões fazem a festa do capitalismo devastador em seu mais perverso estágio: invisível, criptografado, das tarjas magnéticas, das senhas, das dentadas espirituais. O que fizeste da tragédia, Eurípides, príncipe shakespeariano da antiguidade grega?
Guilhermina bebe, o tempo todo, a mais límpida água do seu cantar e do seu domínio quase perfeito da arte de nos iludir. E sofremos e admiramos o seu martírio. Lá vem ela debaixo da burca da mulher, vítima dos homens e dos seus embustes. Lá vai ela circundando o útero que não gerou senão personagens. Lá vem ela me vendo anotar para criar algo a partir do preciso domínio do tempo que só ela possui. Seus filhos são mais vivos que os viventes. Sua dor maior que todos os partos. E, nas encruzilhadas dos desertos da alma, traindo todas as proles e laços familiares e culturais, esquartejando irmão e assassinando filhos, foca a pequena menina que tenta sequestrar o instante, criar provas de sua atuação e, entre dentes, diante da crítica, diante da testemunha, brada numa perfeita elipse ateniense: desliga!
 Madalena, Recife, 05 de dezembro de 2016.

Um comentário:

  1. Texto absurdamente maravilhoso do sempre genial Mestre Denys amado. Concordo plenamente com tudo que foi dito. Augusta medeaPONTO Ferraz é definitivamente arrebatadora, vigorosa, hipnotizante.
    Todos que gostam e dizem fazer teatro precisam ver Augusta em cena.
    O mundo precisa ver Augusta atuar, depois disso, a transformação estará estabelecida, nada será como antes.

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