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A Renascer Produções Culturais organiza o Seminário Internacional de Crítica Teatral desde 2005 evento que reúne estudantes, profissionais e estudiosos de diferentes formações acadêmicas em um compartilhar de experiência, opinião e conhecimento dos mais diversos países, com o propósito maior de fazer avançar o desenvolvimento do discurso crítico sobre a criação teatral, em todo o mundo. O exercício da crítica de teatro como disciplina e a contribuição para o desenvolvimento das suas bases metodológicas constituem, assim, a prática do Seminário Internacional de Crítica Teatral, levada a cabo por críticos do teatro e uma gama de especialistas nas áreas de conhecimento que entrecruzam comunicação, história, filosofia, arte, literatura e teoria teatral, dentre outras. O Seminário Internacional de Crítica Teatral é um projeto que busca implementar no estado de Pernambuco um espaço permanente de debate sobre a estética teatral contemporânea. A edição 2011 tem como tema o Teatro fora dos Eixos. Todas as atividades desenvolvidas pelo seminário terão como base a discussão das poéticas cênicas que estão se propondo em produzir trabalhos que estão fora do cânone do teatro ocidental.

terça-feira, 6 de dezembro de 2016

O pão e pedra

O dogmatismo político da Cia do Latão

Por: Diego Albuck

Com um espetáculo que problematiza a greve dos metalúrgicos do ABC em 1979, a Cia do Latão traz ao Festival Recife de Teatro Nacional um de seus espetáculos mais emblemáticos – O pão e a pedra.

Um dos pontos da peça se calca na Teologia da Libertação, uma corrente teológica que nasce na América Latina no final da década de 1960, onde o catolicismo combatia veementemente a desigualdade social e o incentivo à luta de classes. Por conta dessa ideologia, a igreja se tornava uma das principais apoiadoras aos movimentos sindicais e grevistas, cedendo seu espaço para sediar reuniões políticas.

É com esta realidade de pobreza e exclusão que acompanhamos metalúrgicos da fábrica Volkswagen que em troca de salários baixos vendiam seu trabalho para ter uma melhor qualidade de vida. Como forma de protesto eles organizaram uma greve sindical em São Bernardo do Campo e com isso enfrentaram vários percalços como a ditadura, a mídia e todas as dificuldades afrontadas pela paralisação.

Na peleja pela sua sobrevivência, Joana, mulher, mãe, solteira, operária se disfarça de homem para tentar melhorar a sua vida e a do seu filho. A personagem se coloca o tempo todo se questionando sobre o porquê de lutar nesta greve, visto que, já tinha participado de tantas outras e não tinha visto nenhuma mudança significativa. A operária também questiona a situação feminina no setor fabril, principalmente a diferença de salários entre homens e mulheres.

Esse embate de gênero é um dos pontos mais cruciais na peça, visto que além da insatisfação geral dos trabalhadores, temos também o discurso feminista que revoga seu direito igualitário
aos dos homens. Vemos mulheres resistentes que lutam ora lado a lado, ora contar seus companheiros nessa luta de classes.

A partir desses embates, Joana resolver ser João Batista, um operário que logo ganha à confiança de seus companheiros. É interessante ver que além de mulher operária, Joana é mãe e vemos ali uma mãe disposta a tudo a recuperar seu filho e na perspectiva de melhorar a sua vida. É importante salientar a escolha do nome João Batista que, logo, nos fez remeter ao profeta considerado o precursor de Jesus Cristo.

A peça traça grandes reflexões acerca da resistência sindical abordando desde o enfrentamento de classe assim como as contradições de gêneros que podem ser vistas nas cenas dos vestiários masculino e feminino. Os pensamentos de homens e mulheres se alinham na perspectiva de uma melhor qualidade de vida e de um aumento salarial. E Joana/João transita por todas as questões e seus contrassensos.

Um dos pontos negativos na dramaturgia é o romance clichê entre Joana e Lucílio, o Fúria Santa que, no decorrer da narrativa ganha mais dimensão do que o protagonismo feminino imposto pela personagem naquele ambiente sindical. É um pesar vemos definhar um personagem com um discurso tão forte e arrebatador se perder em bobagens juvenis, estas que se estendem até o final do espetáculo, fazendo a peça ficar cansativa e sem graça.

Além do novo sindicalismo e a igreja progressista, o movimento estudantil de esquerda também se engaja nessa luta pela democratização do país. Se hoje o Partido dos Trabalhadores (PT) está sofrendo um declínio político, no espetáculo vemos o seu surgimento na ascensão desse novo sindicalismo, principalmente na presença ilustre de seu líder mais emblemático o ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva.

É nesse quesito que a peça tem seus pontos mais fracos, quando vai abordar sobre o líder petista e seus discursos. A narrativa aparenta não querer parecer panfletária e tenta se desculpar o
tempo todo pelo discurso que traz. É notório o acanhamento do espetáculo em falar abertamente sobre a importância do movimento esquerdista na história do país por temer alguma represália.

Ao invés de aludir que após as greves, houve um enfraquecimento do regime militar, bem como a importância de Lula para o movimento sindical e suas conquistas como a garantia dos direitos dos trabalhadores rurais, o direito de greve, a redução de jornada de trabalho, o seguro-desemprego, dentre outras, o espetáculo se perde em músicas, festas e romances bestiais fazendo com o espetáculo fique cansativo e chato.

Em Tempos de pedra para comer...

Em tempos de pedra para comer, o teatro oferece o pão



Por Vinícius Vieira

Professor e jornalista



Clima de desalienação e resistência dão o tom ao novo espetáculo da Companhia do Latão, “O pão e a pedra”. A peça foi encenada dentro da programação do Festival Recife do Teatro Nacional, de 23 a 27 de novembro, no Teatro Hermilo Borba Filho.



Os momentos de greves dos trabalhadores metalúrgicos do ABC paulista no fim da década de 70, o novo movimento sindicalista, a interferência da Igreja, a mobilização estudantil e o surgimento do líder sindical Luiz Inácio Lula da Silva são revisitados por meio da escrita cênica épica. Aliás, os pressupostos bretchianos são afirmados com a premissa de que o público não pode perder sua criticidade perante os conflitos retratados. O panorama de democratização e busca de direitos dialoga bastante com o atual cenário de inquietação política nacional, o que levou a plateia a manter os olhos vidrados na encenação e aplaudir calorosamente o trabalho após quase três horas de apresentação.



As relações de gênero e as injustiças cometidas pelas questões trabalhistas machistas também são refletidas em “O pão e a pedra”. Joana, uma trabalhadora metalúrgica, se traveste de homem para receber melhor salário. Essa escolha possibilita um salto positivo em sua vida e ecoa o absurdo da inferiorização da mulher no mercado profissional, na sociedade. A personagem ganha espaço em nosso imaginário por encontrarmos nela uma válvula que evoca tantas outras figuras femininas as quais se desdobram para garantir a sustentação da casa e conseguir educar os filhos. Somos assim, envolvidos em um jogo de aproximação devido a humanização das relações observadas, mas também somos convidados a ter um olhar atento e crítico às contradições, aos acontecimentos históricos descortinados pela teatralidade.



Sérgio de Carvalho é quem assina a dramaturgia e a direção da obra a qual enveredou pelos caminhos da criação coletiva para expor as contradições sociais. Aquilo que foi posto em cena tem um quê de documental com ressonância ficcional entre as figuras exibidas.



Na encenação, o ex-presidente Lula não é fisicalizado pela presença de um ator, mas ganha espaço a partir da gravação de seu discurso quanto presidente do sindicato dos metalúrgicos.



Em cena, os atores e atrizes cantam para explicar ou contextualizar as situações compartilhadas e desempenham essa ação com qualidade técnica. Entretanto, as vozes faladas, em alguns momentos, poderiam alcançar maior volume e intensidade. A peça conta com atores bastante habilidosos, porém, a direção não consegue atingir uma unidade interpretativa, o que torna o elenco desnivelado.



São múltiplos e profundos os signos postos em cena. O sexo entre dois namorados no carro e a fala nada carinhosa da mulher ao afirmar “você só quer me foder”, ou a imagem cênica de um garoto sentado em uma cruz, deflagram uma série de sentidos os quais povoam nossas mentes dias após a apresentação. São construções muito bem elaboradas e assertivas que reiteram a necessidade de estranhamento dos fatos, das coisas.



A peça convida a ir além das superfícies, das decodificações óbvias e incita na plateia o ímpeto de transformação. Em tempos difíceis, fincados na escolha entre o pão ou a pedra para comer, fica a certeza: o Latão faz jus a verve do Teatro Político.

NÓS

Espetáculo ‘Nós’ é sintoma e remédio para o mal estar da pós-modernidade
Por Vinícius Vieira
Professor e jornalista

A incapacidade do homem pós-moderno de lidar com o que há de humano em si, com o encontro, a alteridade compõe o ponto nevrálgico do espetáculo “Nós”, do imponente Grupo Galpão (MG). Em zona de conflito cíclico, a condição humana é desenhada, na peça, em contexto de repetições, ruídos, interrupções, incapacidade de ser e impossibilidade de sentir o outro. O trabalho foi apresentado dentro da programação do 18° Festival Recife do Teatro Nacional, na quarta (23) e quinta (24), respectivamente, no Teatro Luiz Mendonça.

O discurso levado à cena é polifônico, com referências filosóficas, da literatura russa, da música, com fortes influências dos temas emergentes que assolam a sociedade: a violência, as catástrofes, o terrorismo, as intempéries sociais como o preconceito. Os enunciados partem de uma conversa cotidiana em uma cozinha – espaço da casa, esfera da intimidade, socialmente convencionado como lócus de partilha, comunhão. Mas rapidamente os enlaces começam a se esfacelar, pois as figuras apresentadas estão aprisionadas na individualidade. Esse ponto de partida possibilita ao espectador projetar-se na cena, despertando inquietações e angústias no observador.

As ações são postas em um espaço cênico fluido o qual se transforma em territórios múltiplos e instáveis, que partem da esfera local com ressonância no global. O caótico e a provisoriedade são fisicalizados na cenografia funcional de Marcelo Alvarenga, a qual possibilita aproximação e distanciamento do fundo do palco, deslocamento de porta, criação de rampa que conduz o homem a ele mesmo – ao fundo, um espelho revela a imagem de quem o observa. É como se a cenografia tentasse nos salvar, nos lembrar, bradar nossa potencialidade para o encontro com nós mesmos e com as demais pessoas.

A canção “Lama” entrecorta as falas dos atores e é usada na encenação como recurso poético potente para questionar o que somos em tom boêmio e jocoso, remetendo ao clima melancólico dos finais de festa (chegamos ao fim da humanidade e só nos resta lamentar?). A música é cantada e tocada pelos próprios atores em ações cômicas, nos constrangendo divertidamente com o ridículo daquilo que escolhemos para viver. O cômico é amplificado pelas ações do elenco que se movimenta, anda, para em dissonante desespero.

A sonoplastia ganha prominência na orquestração cênica ao acentuar o sentimento de solidão e abandono reproduzindo, a partir da fala dos atores, ecos, sublinhando momentos pontuais da fala, reverberando o mal estar social, explodindo em nós bombas que aterrorizam, desvelando o ponto no qual chegamos e aquilo que, talvez, ainda poderemos ser. O desenho de som no espetáculo é posto entre o registro eletrônico e o ao vivo.

A dramaturgia de Marcio Abreu – que também assina a direção – e Eduardo Moreira é dispare, fragmentada, sem linearidade. Nela, o diálogo está em crise. Todos falam sem ouvir e sem serem ouvidos. Lançam perguntas, mas permanecem com a ausência de respostas. Estão agrupados na solidão da existência e daquilo que fizeram dela. Em cena, as personagens não são apresentadas em contornos psicológicos que justifiquem suas ações. Embora as tensões provenientes das relações humanas decadentes, o conflito exposto é resultado da relação do homem com o mundo, as estruturas de poder que o afeta, mas que são criadas e mantidas por ele. Aliás, o texto apresentado desafia o modelo clássico do drama e surge diretamente da cena, de improvisações realizadas pelos atores na sala de ensaio, procedimento influenciado pelas criações coletivas e processos colaborativos com forte presença nas décadas de 1970 e 1990.

A encenação concebe com sofisticação imagens cênicas de grande impacto e múltiplos sentidos. A sopa, preparada pelos atores durante a peça e compartilhada com a plateia, surge como solução para requentar a nossa humanidade em contexto congelante. Os limões jogados no ar revelam a acidez proveniente do âmbito social no qual afetamos e somos afetados. Eles são transformados em bebidas e distribuídos ao público. Mais uma vez, a solução apresentada parece ser o contato com o outro.  Falando do que se come e bebe, é impossível não destacar os cheiros que a cena exala: de verduras, legumes, o forte odor do alho, da sopa de legumes em cozimento.

E em meio ao panorama caótico, de incertezas e liquidez, do medo de sentir medo - o qual cria barreiras nas relações interpessoais – de preconceito às minorias e a precarização do ser artista, não adianta clamar pelas divindades. Chamar os profetas em busca de remédio para o mal que nos assola parece não abarcar a complexidade de nossas ações. Isso já não é o bastante.  

O pronome pessoal que intitula a obra responde quem pode nos despertar e desviar dos vícios e letargias, “Nós”. Para o Galpão, somos o messias de nós mesmos e o teatro torna-se o templo que nos (re)liga. O discurso parece ter convencido a plateia que subiu ao palco do Luiz Mendonça, nesta quinta-feira, ou dançou de onde estava para reaprender com o outro como se reconectar, restabelecer laços. Foi fácil: olho no olho, sorriso no rosto enquanto o corpo se mexia ao som de I want to break free, do grupo britânico Queen. No palco, agora pista de dança, muitos abraços apertados - até romantismo entre um casal com direito a beijo na boca teve. Era visível os olhares fascinados com a coletividade. O Galpão conseguiu, de fato, arrebatar o Recife e oferecer, com muita beleza e dignidade, aquilo que o teatro é por essência: comunhão.



Assista ao teaser do espetáculo 'Nós': https://vimeo.com/161677260 (se possível, inserir o vídeo na publicação)

DESLIGA!

DESLIGA!
João Denys
Apontamentos ao espetáculo MEDEAponto visto no Teatro Hermilo Borba Filho, em 21 de novembro de 2016, no 18º Festival Recife do Teatro Nacional, protagonizado por Augusta Ferraz.
Pare de chorar João Denys. A furtiva lágrima fervente sulca o rosto, perfura a pele; é brasa movente. Pare! Eis o ponto. Pronto: MEDEAponto, não! MEDEAponto sim! Vai acender um incenso? Vai beber? Vai ofertar vinho ou cachaça envenenada ao maldito público? O deserto no palco desértico. Desligue-se! O celular de Medea é antigo como a tragédia de Eurípides. Uma mulher traidora que amarga a traição. Que bela poesia infinitamente reprocessada, amassada, fustigada, dilacerada e mesmo assim mantendo seu fulgor, sua boniteza. Medea não representa a mulher cidadã porque mulher antes de ser feminista e exarar um discurso feminista é demasiadamente humana e, como macho, fêmea, transexual, gay ou lésbica, sente o desejo a lhe jogar para o chão como papel prateado do chocolate de Fernando Pessoa. Ela deita tudo a perder: identidade, pertencimento, cidadania. Portuguesa Medea, ibérica e monstruosa, bicha invertida capaz de matar e esquartejar por paixão pelo estrangeiro, a augusta Medea invade as encruzilhadas do deserto cênico com o corpo em brasa, trêmula de paixão pasoliniana, de quem assimilou criativamente a potência criadora e enlouquecida de Maria Callas. Cada desmaio é um filme ou o filme do mestre dos desdentados e dos michês italianos, da política dos corpos e do mundo, atos a nos consumir com suas forças jasônicas, com o prazer de viver, de copular.
Eis o ponto de candomblé que o mago Marcondes Lima nos mostra em retângulos e círculos de luz-caminho e um vazio cênico de doer nos ossos. Nossos ossos? Sei lá! Vi um modelo de fêmea apaixonada, logo, doente, dorida, vindo em minha direção com a força dos vulcões a dizer palavras reinventadas de um poeta grego mais mulher que seus predecessores:
Ésquilo e Sófocles. Mulher reclamadeira, terremoto permanente que acusa a ingratidão, a traição e esquece a mais imperdoável de suas traições cometida por uma desmesurada paixão: a traição aos ancestrais, à pátria, à terra, aos seres de sua laia em nome do diferente, do bizarro. Medea é matadora profissional a serviço do gozo ao ver o boy de seus sonhos e literalmente desmaiar diante desta visão. 
Desligue-se deste mundo. Não adiante reclamar que as mulheres não têm direitos. Que seu lugar é a alcova perfumada e os feitiços que só as feiticeiras detêm. Desligue essa droga de celular. O meu não filma. Você não sabe que vai roubar minha alma com essa luzinha maldita diante dos meus elipsoidais, dos meus plano-convexos, dos meus setlights, da minha rotunda negra? Desligue essa porcaria, menina. Você não sabe que eu não admito filmagem do meu espetáculo?
Uma deusa em cena a desafiar os humildes espectadores.  Lá vem ela no deserto com suas vestes-filhos e sua burca-marido a nos dizer do talento poético de Medea e das capacidades de nos enfeitiçar que só uma Augusta pode ter com sua carne trêmula, com seu corpo escondido do sol, toda lua, toda mulher, toda hemorragia a mover-se num ritmo que qualquer aprendiz de feiticeira destruiria. Carrega no peito um celular arcaico, incapaz de localizar a traição política de seu amado, mais jovem e cheio de tesão vazio (aquele tesão que fode as pedras). Desgraçada macumbeira a cantar pontos portugueses ou, se quiserem, fados, que bem poderiam ser pontos de outa nação Nagô ou Jeje, Medeaugusta é força da natureza em cena, ligada em tudo e em cada movimento do público, em cada piscar de olhos. Ela segue sua sede ancestral de um deserto de teatro e de amor. O deserto desta terra queimada de cana e tão só ou sacana ou só cena. Sá Nanas, Sá e Guarabyara, doce e salgada e enlameada, mas vazia de outras paisagens senão o amor ao teatro e àquilo que ainda lhe faz viver, pois a morte augustiniana é ser só no deserto do Saara, contanto que litros transparentes de água viva hidratem o seu aparelho fonador e o seu espírito de afilhada de Apolo e Dioniso. Tudo concorre para o seu diálogo com o gênio do cinema italiano e sua musa norte-americana-grega Maria Callas. Um espetáculo no deserto da alma e das quedas da Diva. Uma macumba nos tijolos de um bofe enlouquecido diante da vingança mais perversa e eficaz.
Destruo sua obra, você que é só imagem projetada sobre minhas paredes, as paredes de Hermilo Borba Filho, mas que antes era do meu também deus Apolo. Espaço Apolo contaminado pela embriaguez dionisíaca deste devasso dos Palmares e da melopeia ineficaz de um Bandeira 2. Toca o telefone. Não atendo. Ele é uma horcrux; um objeto enfeitiçado semelhante ao projetor de imagens jasônicas dos anos 1960. Super-oito movendo-se no espaço? Não fale comigo.
A carne treme. É trêmula como as carnes provocadas por Almodóvar. Não é madame Callas que representa e canta. São todas as mulheres traídas e revoltadas, capazes, só elas sabem, de saborear o prato frio da vingança como quem come feijoada gelada com arroz, também gelado, na madrugada fria depois da farra, depois de toda a psicanálise selvagem de botequim. Será Amália Rodrigues, será Bibi Ferreira, será Maísa? Serão todas as mulheres traídas/traidoras? Serão os homens todos traídos/traidores? Medea é mulher trans ou homem trans? É lésbica ou gay ou tudo isso e mãe parideira?  Medea avança e o texto de 431 a. C. nos desliga da miséria obscura deste mundo, agora, para nos revelar a miséria iluminadora da poesia cênica, revigoradora da beleza e do poder do grito que ainda hoje nos imobiliza em nossos toscos lugares de testemunhas, espectadores, teóricos do olhar. Somos cúmplices da augusta aparição de uma atriz que devora o público e acredita que esse é seu real poder antropofágico. Um empoderamento imperial, assustador, contemporâneo, pós-colonial, pós-tudo, pós-oprimido que em sua performance autossuficiente imita Téspis a manipular todas as máscaras.  
Pare! Não me mate. Não me devore com seu smartphone. Desligue-se do mundo. Aqui é outro Galaxy. Acredite nos meus focos, nos meus ebós, no meu catimbó, no meu sangue sempre vivo. Beba da pequena garrafa de vinho antigo e venenoso servido em minúsculas taças de plástico. Pode quebrar! Meus colares nordestinos de esferas de isopor revestidas de tecido nunca serão aqueles com os quais dialogo e que o poeta assassinado barbaramente adornou o colo lírico de La Divina do milionário Aristóteles. Aqui o sol denuncia a ausência de manutenção dos astros; aqui o deserto é de tábuas corridas, também a abrigar, como a areia, pestilentos escorpiões; aqui as paredes de tijolos se desmancham e os arrecifes da Grécia nordestina impedem que o mar revolucionador avance em seus domínios criativos e destrutivos. Os tubarões fazem a festa do capitalismo devastador em seu mais perverso estágio: invisível, criptografado, das tarjas magnéticas, das senhas, das dentadas espirituais. O que fizeste da tragédia, Eurípides, príncipe shakespeariano da antiguidade grega?
Guilhermina bebe, o tempo todo, a mais límpida água do seu cantar e do seu domínio quase perfeito da arte de nos iludir. E sofremos e admiramos o seu martírio. Lá vem ela debaixo da burca da mulher, vítima dos homens e dos seus embustes. Lá vai ela circundando o útero que não gerou senão personagens. Lá vem ela me vendo anotar para criar algo a partir do preciso domínio do tempo que só ela possui. Seus filhos são mais vivos que os viventes. Sua dor maior que todos os partos. E, nas encruzilhadas dos desertos da alma, traindo todas as proles e laços familiares e culturais, esquartejando irmão e assassinando filhos, foca a pequena menina que tenta sequestrar o instante, criar provas de sua atuação e, entre dentes, diante da crítica, diante da testemunha, brada numa perfeita elipse ateniense: desliga!
 Madalena, Recife, 05 de dezembro de 2016.

sábado, 3 de dezembro de 2016

Severinos, Virgulinos e Vitalinos

O Grande Círculo da Vida: o musical circense sob o olhar da Dispersos.

Por: Diego Albuck

Após uma excelente estreia em Recife com o espetáculo “Abraço – Nunca estaremos sós”, indicado a seis prêmios APACEPE, a Dispersos Cia de Teatro produz um novo trabalho que envereda por uma nova temática – a arte circense e o universo popular.

A convite do grupo, o dramaturgo e diretor Samuel Santos se juntou a trupe para encenar o espetáculo musical “Severinos, Virgulinos e Vitalinos” que teve sua estreia no 18 Festival Recife de Teatro Nacional.

Mesmo com o atraso de mais de dez minutos por conta de alguns ajustes, isso não pareceu ter afetado a encenação. Se a ansiedade existiu por conta da estreia, esta foi transformada em uma entrega genuína por aqueles dois jovens, Lívia Lins e Madson de Paula que interpretavam os personagens principais que nos saudavam e convidavam para adentrar naquele universo mágico.

O texto nos mostra a saga de dois sertanejos, Muriqueta e Tramboeta, dois jovens, filhos de pais artistas que se conhecem e se deparam com um
sonho em comum – encontrar seus pais que fugiram com o circo.

A realidade do sertanejo é posta em cena na mais pura poesia através dos personagens que não se abatem com a tristeza do sertão, mas são fortalecidos pela fé que os move tanto em encontrar seus parentes, como também em seres artistas. Nem a dureza vista nos personagens da Morte, a Severina, da Violência, o Virgulino e do sonho, Vitalino, conseguem tirar o foco dos retirantes em seguir sua jornada. Pelo contrário, estes personagens os fortalecem ajudando-os na busca de seus sonhos e também de si próprios.

A concepção artística do espetáculo trazida por Álcio Lins é riquíssima, visto que todos os objetos cênicos são móveis e de fácil acesso para troca de personagens e mudanças de cena. É de um primor cênico quando vemos todo o cenário montado pelos atores tal qual um picadeiro circense. A estética dos figurinos me trouxe com bom saudosismo a montagem de Marco Camarotti do “Auto da Compadecida”, com tons crus, marrons e um certo colorido nas vestes dos personagens.

A luz é um show a parte, onde as tonalidades azul e vermelha se unem a várias outras pintando e moldando a história encenada por Samuel. Vale frisar que na cena da noite fria do sertão, a
iluminação invade toda a plateia e todos os espectadores comungam com aquela beleza e singeleza do céu estrelado que toma conta do teatro.
O projeto de iluminação é uma técnica somente usada nos Estados Unidos, “Laser Blisslight”, em que uma única luz projeta milhares de pontos luzes instantânea. Esta técnica foi trazida pelo iluminador Cleison Ramos que, com grande maestria, utiliza em alguns de seus projetos.

É importante ressaltar que os intérpretes estão brilhantes em cena, o trabalho vocal de Madson e Lívia é espetacular, pois ambos sabem dar os tons necessários a cada canção seja esta mais grave ou aguda. O trabalho corporal também é excelente, visto que percebemos na troca de personagens, uma marca gestual bem definida para cada um.

Se na interpretação ganhamos grandes momentos do espetáculo, na narrativa o texto fica cansativo, principalmente na cena da Severina em que nas primeiras falas já fica claro o seu propósito de mostrar o castigo da seca, mas esta se prolonga muito nos exemplos dados, dando uma repetição desnecessária, deixando a cena cansativa e quebrando o ritmo do espetáculo.

Os atores em todo o tempo do espetáculo são acompanhados por músicos, a Bandinha, composta por Danielle Sena, Tiago Nunes, Victor Chitunda e
Leila Chaves, que fazem o acompanhamento musical.

A direção musical de Victor Chitunda e Leila Chaves é de um primor em detalhes, visto que apresentam um repertório autoral atrelado a algumas referências ao universo popular. Além disso, cada componente da banda se desdobram em tocar mais de quatro instrumentos, assim como cantam quase todas as músicas do espetáculo o que mostra os talentos múltiplos daqueles artistas.

Se o papel da Bandinha é peculiar no desenrolar do espetáculo, pois ajudam os retirantes a contarem suas histórias, isso não foi tão bem visto em cena por conta de alguns atores. Em alguns momentos do musical, víamos momentos de dispersão, onde os músicos pareciam apenas esperar uma marca para entrar em cena, ao invés de prestar atenção à história que estava sendo narrada. Salvo, a atriz Danielle Sena, que mostrava estar atenta ao que estava ocorrendo. Como por exemplo, suspirar a cada fagulha de paixão que nascia entre os personagens.

Um ponto positivo na narrativa do espetáculo é que ambos os personagens no final não encontram aquilo que estavam procurando. Eles se encontram e é exatamente aí onde tudo se constrói. O passado já não era mais necessário diante a um novo futuro que se formava. De agora em diante, os dois juntos iriam
construir o seu circo e a sua carroça, abrindo assim um leque de infindas possibilidades e grandes jornadas que estariam por vir.

“Severinos, Virgulinos e Vitalinos”, mostra que a Dispersos Cia de Teatro vem solidificando o seu papel na busca de produzir novos textos e repertórios autorais, trazendo em cena e fora dela artistas plurais que desenvolvem múltiplas habilidades artísticas. Desejo todo o sucesso a este grupo e espero ver mais trabalhos destes na cena

NÓS

A última ceia do Galpão

Por: Diego Albuck



Em sua 23ª montagem o grupo Galpão traz ao Recife um banquete recheado de questões atuais que recriam o nosso cenário político atual.

O espetáculo se torna tão coevo quanto às discussões que escuto em transportes públicos, praças e no meu local de trabalho com temas como: intolerância, democracia, partidarismo, violência, dentre outras questões que convivem com os brasileiros.

Enquanto preparam a sua ceia, uma sopa de legumes e verduras, sete vozes heterogêneas e polifônicas travam um grande debate tomando como ponto de partida o existencialismo humano.

Por mais que estejam compartilhando de um mesmo local, percebemos as angústias individuais de cada personagem que se veem solitários e impotentes a tantas atrocidades que os envolvem como, por exemplo, o fato de um negro ser humilhado em um ponto de ônibus, um menino-bomba e negros sendo fuzilados pela polícia.

O protesto do ser humano em poder decidir em função da sua própria vontade isenta de qualquer
causa determinante, a partir da ausência de um ser superior que nos julga e castiga se errarmos moralmente, é visto em forma performática na interpretação da música Lama de Paulo Marques, interpretada por Núbia Lafayette. A liberdade de fazer o quer e o que deseja está na essência humana, assim como diz Sartre o homem sempre pode escolher entre aceitar a sua sorte ou revoltar-se contra ela e isso é permeado nas falas e interpretações de cada personagem que, sem identidade definida, colocam suas questões ante a realidade que os cerca.

A atriz Teuda Barra protagoniza uma das cenas mais icônicas da peça – a recriação do impeachment da presidenta Dilma Rousseff. Por meio de votação, os personagens decidem a saída da personagem do palco, sem o seu o total consentimento. Se negando veementemente a sair, ela é expulsa de maneira brutal, o que nos faz rememorar os últimos meses que ficarão registrados nos anais da história do nosso país.

É importante ressaltar a importância da atriz que, no auge dos seus setenta e cinco anos, dá vida a um personagem vivo, intenso, questionador que sofre todos os tipos de humilhação por ser mulher, idosa e a não aptidão para o mercado de trabalho. Mesmo assim a figura dramática se mostra forte, decidida frente as suas convicções ideológicas.

Já prestes a coroar a celebração da comunhão em que os personagens compartilham a sopa com o público, eles reconhecem que não há caminho para ir, a não ser seguir, sendo a única alternativa é de apostar na criação de uma nova realidade.

A ceia de Márcio Abreu consegue, principalmente para quem acompanha o espetáculo no palco, a representação das reações físicas e emocionais mais profundas dos personagens com uma maestria espetacular, trazendo experiências sensoriais magníficas tal qual inalar o bom cheiro da alimentação.

O espetáculo é belíssimo em todos os âmbitos que se propõe, seja na representação de seus personagens, no discurso ou na encenação. A utopia de vislumbrar um mundo onde todos possam compartilhar e conviver com suas diferenças independentes de suas crenças religiosas ou políticas e nos desatar dos nós que nos prende é mais um sopro de que ainda existe esperança para a humanidade.Consegue representar as reações físicas e emocionais mais profundas com uma perfeição espetacular.

Medida por Medida

A obra de Shakespeare sob o olhar do Teatro Popular de Ilhéus

Por: Diego Albuck


Com a incumbência de representar Shakespeare, o grupo baiano Teatro Popular de Ilhéus traz um espetáculo baseado em uma peça trágica do autor inglês – Medida por Medida. O texto retrata o abuso do poder na Administração Pública e temas como traição, sexo e moralidade.

A história se passa em Viena, lugar onde a luxúria se tornou prática em todos os membros da sociedade. Ante a tal prevaricação, o Duque resolve extirpar esse mal. Com medo de ser mal interpretado, coloca Ângelo como seu substituto, um homem correto e que não teria problemas de aplicar a lei contra a imoralidade. Dessa forma, o bom homem ao colocar em prática o que fora ordenado condena Cláudio por engravidar Julieta. Inconformado, ele pede a Lúcio, seu amigo, que convença Isabela, sua irmã a defendê-lo. É com esse quiprocó que o grupo baiano conta a sua versão da história através de um espetáculo comediante.



Com o propósito de transformar a tragédia inglesa em literatura de cordel, gênero literário popular originado em relatos orais e rimado, os atores nos contam a história através de causos, cantos e muita música. Viena é transportada para o Nordeste brasileiro e ficamos com a impressão que a história realmente aconteceu aqui.

A plasticidade cênica da peça é algo magistral, os figurinos e adereços de Shicó do Mamulengo e de Justino Vianna são um espetáculo a parte, pois apresentam peças impecáveis onde parece que cada tecido conta sua própria história. Como por exemplo, a indumentária da Julieta que traz uma barriga que acende e nela contém um menino dentro. É importante ressaltar que a presença de Julieta causa gargalhadas do público.

A criação da maquiagem de Justino Vianna, também é impecável. Os atores se transformam em figuras escultóricas que servem de referência para nos situarmos acerca dos costumes da época.

Num espetáculo com tantos acertos, um dos maiores problemas do espetáculo se dá justamente na transposição de tragédia para a comédia. A adaptação da obra shakespeariana para o gênero popular feita pelos diretores Romualdo Lisboa e Fernando Yamamoto (Clowns de Shakespeare), peca por querer popularizar demais a obra. A fala, muitas
vezes, parecia estar mais em serviço de uma rima do que na função de contar propriamente a história, fazendo com que a narrativa ficasse confusa e perdida.

A direção musical de Eleiton Cabeça e Marco França (Clowns de Shakespeare) também se mostra equivocada quanto a sua execução. Com um repertório belíssimo, parte das músicas ficava ininteligível por conta da altura dos instrumentos diante da projeção de voz dos atores. Em muitos momentos se fazia dispensável o uso do microfone, este que se tornara um inimigo mortal para o entendimento da música.

Creio que todos os problemas citados são sanados através de pequenos ajustes, estes que se afinar com o restante poderão fazer a direção de Romualdo Lisboa crescer e abrilhantar ainda mais.

O menino e a Cerejeira

A poética humanista do Menino e a Cerejeira

Por: Diego Albuck


Com uma montagem inédita no mundo, a Borbolina Produções e La Rô trazem a Recife o belíssimo espetáculo “O menino e a Cerejeira” adaptado do livro homônimo do autor japonês Ikeda Daisaku.

A obra conta a história de Taiti, um garoto que vive em meio aos destroços deixados pela Segunda Guerra Mundial. Com a perda do pai para a guerra, sua mãe trabalha numa estação de trem engraxando sapatos. Por sua mãe trabalhar o dia todo, o menino fica sempre sozinho em casa e sempre desobedece a mãe saindo para brincar fora do seu barraco. Em uma dessas saídas, conhece um senhor que cuida de uma única cerejeira sobrevivente. Assim, nasce uma amizade entre o garoto e o senhor que encaram a missão de cuidar da árvore que não dá flores.

A adaptação, direção e idealização de Stella Tobar é espetacular em tudo o que se propõe. Se o texto já traz uma riqueza poética através de mensagens humanistas para jovens e crianças, a transposição para o palco transcende ainda mais o propósito da obra literária.

O espetáculo é divido em inúmeras metáforas que conduzem o espetáculo com maestria e leveza que emocionam a quem esteja assistindo.

No começo do espetáculo os atores contam a estória do pássaro e da gaiola. A fábula narra a primeira experiência do pássaro em voar em que a ave fica presa em uma gaiola esperando o momento exato para voar. Tal simbologia pode ser comparada com o personagem principal que vive preso em casa por conta dos perigos da rua após a guerra.

“A gente já nasce sabendo a voar, só precisa relembrar”, Taiti sabia voar, mas também compreendia os limites desse voo. Tanto que tinha plena consciência que estava desobedecendo às ordens de sua mãe em não sair de casa. Mas, o desejo de voar era mais forte e para voar era preciso correr riscos e o garoto estava disposto a cruzar todos eles.

Ao se perder de seu amigo, Taiti encontra um senhor que logo percebe a tristeza iminente no menino. Ambos sentem uma empatia inexplicável que fazem com que os dois não se separem mais. O velho, todos os dias, cuida da cerejeira que não floresce, na esperança de que esta venha a florescer novamente.
Essa fé é desprezada pelos moradores da vila que não acreditam que a cerejeira prosperará. Mas, a persistência do senhor é inabalável tanto que a
mesma fé é depositada no garoto que começa a nutrir o desejo de ajudar o seu “avô” naquela empreitada.

Todas as cenas parecem ter sido feitas sob medida. A singeleza e o olhar de Stella Stobar e a interpretação magistral de Alle Paixão, Cleber Tolini, Guiliano Caratori e do ator pernambucano Paulo de Pontes dão o tom mais que exato a poesia do espetáculo. É de embasbacar a preparação dos interpretes, tanto no quesito vocal, corporal e também musical, já que todos tocam instrumentos em cena.

O cenário e figurinos de Paula de Paoli também são de uma delicadeza magnífica, com a indumentária que se assemelha as ornamentações dos orientais. Outro ponto positivo é a facilidade com que o figurino se transforma à medida que os atores mudam de personagem.

A iluminação de Giuliano Caratori é de uma naturalidade belíssima que quando imersa no palco ajuda a dar as nuances precisas de cada lugar e espaço. Como por exemplo, a chegada do inverno onde o foco de luz azul é inserido no pano branco que cobre a árvore refletindo uma das uma das imagens mais emblemáticas do espetáculo.

E depois do inverno a cerejeira finalmente floresce e renova a esperança daqueles que a aguardavam. Esse evento é cultuado pelos japoneses há mais de mil anos, pois eles veem nos frutos da cerejeira a representação da renovação do espírito e a efemeridade da vida. É nesse momento que temos o momento mais lindo do espetáculo o abraço de Taiti e seu avô, o que causa comoção e aplausos da plateia. O menino ali tinha aprendido o valor da esperança e estava pronto para seguir seu destino.

A forma lúdica e a riqueza em detalhes de cada profissional envolvido fazem com que a peça seja inesquecível. Assim quando entrei ao Teatro Barreto Junior fui bem recebido pelas produtoras que estavam entregando os programas e o livro para as crianças. As duas me trataram tão bem que me senti como criança novamente, espevitada e espirituosa. Vale ressaltar que ambas estavam desobedecendo às ordens, pois aqueles materiais eram para ser entreguem somente as crianças. No entanto, tinha pedido para elas, pois queria saber um pouco mais do espetáculo para escrever minha crítica. Escondido, elas me entregaram e ali fazíamos nosso pequeno pacto de silêncio.

O espetáculo é inspirador em vários sentidos e se torna imprescindível para todas as pessoas de qualquer idade, pois traz uma beleza poética que necessita ser vista e apreciada. No momento em que
estamos passando em nível de Brasil e mundo, “O Menino e a Cerejeira” se torna um acalanto em nossos corações onde a poesia é pulsada, sentida e exalada por todos os poros.

FISHMAN

O heterodiálogo em Fishman
Por Diego Albuck


O Grupo Bagaceira atraca em Recife com o seu mais recente espetáculo Fishman em comemoração aos seus quinze anos de existência. Com mais um trabalho autoral, marca já conhecida do grupo, a peça propõe uma reflexão sobre a complexidade da existência humana.

Dois homens sentados em um bote frente a frente à procura de uma palavra para estreitarem um diálogo essa é a premissa que nos apresenta os atores Ricardo Tabosa e Rogério Mesquita. Há um desconforto de ambos em tentar encontrar um vocábulo perfeito, dentre tantas coisas para dizer, o silêncio é cheio de palavras e aparece como uma privação involuntária dos seres. Nenhum assunto é fisgado, acabado, dito.

Os personagens ora se contradizem, ora se completam numa flutuação de ideias e pensamentos que transcendem qualquer racionalização mais precisa. Eis o complexo horizonte do diálogo e não diálogo.

Não é simples a relação entre aqueles seres, nem o tempo é exato. No entanto, há uma tentativa entre os dois de se reconciliar diante do abandono e da
solidão sofridos. Há também um desejo de se reencontrar, um esforço de reconstituir um laço perdido. Mas, não há fluidez no entendimento e no passar do tempo à fala se torna angustiante por parecer que nada ali se encaixa, nem mesmo um simples abraço.

Ao se colocarem de frente, os personagens se tornam espelhos de si mesmo, ambos os desdobramentos de si. Quando se veem, há uma perda da imagem do eu, de si mesmo, restando apenas a procurar quem se é. A relação se constrói na busca do ser no outro, tanto o outro, o diferente, quanto o outro de si mesmo, assim como os outros imaginários. Pois, sempre existirá o outro. E é nesse conceito de heterodiálogo que o espetáculo se sustenta.

A excelente dramaturgia de Rafael Martins traz uma estrutura não linear que apresenta múltiplos caminhos e destinos entre aqueles seres solitários associados à belíssima imagética que a direção de Yuri Yamamoto constrói a partir de imagens e sensações que permeiam todo o espetáculo.

A plasticidade do cenário cria cenas visualmente instigantes que, a princípio, podem causar estranheza, mas logo desperta empatia a quem assiste. Como por exemplo, o bote que nos traz uma sensação de pertencimento e segurança, mas também de medo e perigo. Ali se trava o embate do ser,
seres, onde a qualquer momento é mais possível se afogar dentro dele do que fora.

Em Fishman, o espectador é provocado, questionado e convidado a todo o tempo a mergulhar e navegar nas águas mais profundas do ser, trazendo umas das mais lindas reflexões sobre a vida.

Vento Forte Para Água e Sabão

A metáfora da morte em
Vento Forte Para Água e Sabão

Por: Diego Albuck


Com foco na dramaturgia pernambucana e novos processos dramatúrgicos, a Companhia Fiandeiros de Teatro traz o espetáculo infanto-juvenil “Vento Forte Para Água e Sabão”, um texto assinado pelos dramaturgos Giordano Castro e Amanda Torres.

O texto nasceu de um curso de dramaturgia “Na Fronteira das Linguagens” proposto pelo dramaturgo pernambucano Luiz Felipe Botelho pela Fundação Joaquim Nabuco. A proposta do curso era unir o exercício da escrita teatral interpenetradas a linguagens diversas, como por exemplo, a dos contadores de histórias, cinema e televisão. Das práticas obtidas no curso, os dramaturgos desenvolveram a dramaturgia teatral do espetáculo.

A peça narra à história de Bolonhesa, uma medrosa bolha de sabão que tem medo de estourar. Sua perspectiva sobre a sua frágil vida muda ao conhecer Arlindo, uma rajada de vento aventureira que a propõe uma ousada viagem na busca de conhecer as belezas do mundo.


Os atores Daniela Travassos e Mauro Monezi que dão vida a Bolonhesa e Arlindo, ao longo da jornada, convivem o tempo todo com o perigo da morte através dos obstáculos que encontram, tais como: pedras, árvores, poluição e até mesmo crianças espevitadas que adoram estourar bolhas de sabão.

Com uma experiência de atuação em espetáculos infanto-juvenis, Daniela consegue encontrar os tons exatos da personagem fazendo com que ora fiquemos com raiva da indecisão da personagem e ora embarquemos no passeio pelo desconhecido. A entrada de Mauro Monezi ao espetáculo, visto que a rajada era feita por Tiago Gondim, não causa estranhamento a quem já viu a peça duas vezes como eu.

E os dois amigos vão seguindo além de todos os limites conhecendo o mundo e esbarrando com encantadores personagens que deixam a sua linda contribuição na história da bolhinha. É interessante frisar que cada personagem se apresenta de modo único e particular, trazendo suas nuances tais quais os engraçadíssimos e refinadíssimos algodões-doces.

À priori, a pequena bolha se sente amedrontada ao perceber que está constantemente exposta aos perigos, mas a companhia do novo amigo e a sede de
desvendar os mistérios do mundo a tornam mais madura e consciente sobre a sua existência passageira.

A entrega dos atores, Victor Chitunda, Kéllia Phayza, Geysa Barlavento e Ricardo Angeiras, em dar vida a todos os personagens são de uma riqueza extremamente poética, pois todos conseguem dar cor, ritmo e brilhar cada um ao seu modo.

É importante destacar a disciplina e concentração do múltiplo artista Victor que além da interpretação, dança, canta e ainda toca o violão em cena. Assim como a belíssima interpretação de Kéllia e Ricardo ao dar vida a um casal de apaixonados, protagonizando uma das cenas mais lindas do espetáculo.

Parabenizo também, a cronicidade e precisão de Geysa ao interpretar três personagens diferentes em tão curto espaço de tempo. Em três cenas consecutivas, a atriz interpreta a engraçadíssima Briseida, o ingênuo Capim Santo e uma criança correndo. Tudo isso acontece com as devidas trocas de figurinos numa exatidão milimetricamente correta e uma interpretação brilhante.

A direção musical de Samuel Lira e a composições de André Filho e Giordano Castro são um espetáculo a parte. As músicas são lindas, singelas e de fácil
assimilação tanto que em muitos momentos me vi cantarolando todas das músicas.

Outro ponto positivo do espetáculo é a funcionalidade do figurino. As caracterizações da bailarina e do caboclo de lança são fantásticas, pois conseguem traduzir em indumentária a essência dos personagens Bolonhesa e Arlindo, além de trazer uma pernambucanidade ao espetáculo.

O único incômodo se dá em relação à vestimenta geral, os macacões jeans e a blusa branca. Em cada peça, os atores tem um adesivo constando o nome real dos atores, o que causa estranhamento, pois em nenhum momento do espetáculo se faz alusão aos nomes deles, fazendo com que o adesivo não exerça função nenhuma na história.

Se o espetáculo é rico em imagens, música e interpretação o mesmo não acontece com a direção de arte. A direção assinada por João Denys e Manuel Carlos é tão simplória que empobrece o espetáculo. O cenário aparenta estar não estar acabado e muito mal cuidado. Como por exemplo, o colorido tecido que cobrem os tablados que são tão apagados que em nada dialogam com a história.

Outro ponto negativo do cenário é o grande círculo que fica atrás dos tablados que aparenta sequer estar finalizado fazendo com que a plasticidade da peça
fique totalmente comprometida por conta desses descasos.

A iluminação de João Guilherme de Paula também em nada corrobora em embelezar a história. Os tons escolhidos são simples, com pequenos focos de luz nada faz, pois parecem estar ali somente por estar.

Contudo, mediante a esses contratempos na encenação, Vento Forte Para Água e Sabão traz em sua poética, muito bem dirigida por André Filho, um tema bastante delicado para os adultos – a morte.

A morte faz parte do ciclo natural da vida do ser humano e a metáfora exalada pelo espetáculo se torna uma excelente oportunidade para os adultos conversarem com as crianças sobre o assunto. A singeleza com que Bolonhesa se despede daquele universo é de uma delicadeza descomunal onde a bolha aceita a sua morte, todavia não como um fim da vida, mas com uma chance de transformação.

O MENINO E A CEREJEIRA

Quando o melhor adubo é o tempo e a resiliência
Por Vinícius Vieira
Professor e jornalista

Um pássaro de origami, manipulado por um ator, pousa suavemente na mão do menino Taiti, sentado em frente a uma cerejeira. Após breve estadia, a ave alça voo pelos céus da cena arrancando um doce sorriso do garoto em momento sublime. Em outro instante, a mesma cerejeira é banhada em flocos suaves de neve que caem, delicadamente, das mãos de outro ator, regando os galhos e formando um manto branco e gélido sobre a planta. A lua e o sol, representados por sombrinhas, cruzam a cena revelando a passagem da noite para o dia. É assim, com muita poesia, que a escritura cênica de “O menino e a cerejeira” estabelece uma relação amistosa com o tempo, enlace diferente ao que a cultura ocidental está acostumada a viver.

 A peça foi apresentada no sábado (26), no Teatro Barreto Júnior, compondo a grade de espetáculos do 18° Festival Recife do Teatro Nacional. O marco zero da encenação é o livro homônimo do escritor Daisaku Ikeda. A propósito, é a primeira vez que a obra é adaptada e levada aos palcos.

No referido evento, Stella Tobar tem se mostrado como uma exímia diretora, preocupada em levar ao público infantil temáticas caras à existência humana. No mesmo teatro, Tobar também encenou “Dois idiotas sentados cada qual no seu barril”, na noite anterior - outro trabalho erigido a partir de adaptação da literatura para o universo teatral. A artista tem se posicionado no lugar para além das montagens de contos de fadas ou duplos, no teatro, de personagens que povoam o cinema e a TV.

O protagonista da peça, Taiti, mora em um povoado com sua mãe em uma vida nada fácil após a morte do pai em período de guerra. Sua genitora precisa trabalhar e, para isso, deixa-o sozinho em casa. O menino passa o dia só, sem a supervisão de um adulto. Ele tem momentos de melancolia e sofre com a ausência paterna. Não fosse a presença de um amigo que o estimula a sair de casa para brincar, os dias poderiam ser ainda mais penosos.

A história é desenrolada entre as estruturas épica e dramática. Os atores, ora narram as vivências da personagem, tecendo comentários, ora vivem na pele dos seres ficcionais em um divertido jogo de antecipar acontecimentos e realizar as situações. Por vezes, as próprias personagens verbalizam sobre si mesmas e quebram a quarta parede estabelecendo contato próximo ao público. Aliás, nesses momentos, Taiti consegue nos arrebatar com sua simpatia e também com seus conflitos existenciais puramente humanos acerca da solidão, a saudade, o medo, a morte.

A encenação é inteligente e goza de escolhas assertivas para estabelecer trocas de lugares e alterações de tempo: Taiti “corre” parado no centro do palco, enquanto biombos movidos pelos atores transformam o cenário ao fundo com poucos, mas sugestivos, elementos de cena; Caminhadas circulares também são usadas em uma repetição de ações entre o garoto e sua mãe para designar a passagem dos dias em marcações ágeis, as quais contrastam com a dilatação do tempo em momentos pontuais da peça. Uns aos outros, no elenco, se ajudam na composição de personagens ativadas a partir de um adereço utilizado, pequena mudança na indumentária aciona outro figura ficcional.

A montagem é marcada por diversos momentos de soluções cênicas simples, mas encantadoras. É muito interessante a tradução do estado emocional de Taiti posto em cena, metaforicamente, pelas batidas dos tambores que intercala sua fala aflita. No trabalho, ter espaço para falar sem receios sobre a dor, encarando as dificuldades como elas de fato são, é, sem dúvida, um de seus maiores méritos. Pelo filtro da ludicidade, as crianças acessam a dicotomia entre limitação e fé, morte dos sonhos e esperança.

Não foi difícil perceber a intensa interação da plateia com o espetáculo. Crianças chamavam por Taiti, riam em uníssono, comentavam as interações das personagens. Já os adultos, se entreolhavam com expressões de encantamento e surpresa perante a delicadeza da obra. Em dado momento, houve até aplauso em cena aberta após o protagonista abraçar a mãe, acariciando, na verdade, a alma de todos que ali estavam.

“O menino e a cerejeira” é um afago, respiro em meio as intempéries da vida. Sem dúvida, merece ser visto por todos aqueles que desejam relembrar que são pássaros.

Assista ao trailer do espetáculo: https://www.youtube.com/watch?v=hyPNnwrZUpQ 

Dois idiotas sentados

Teatro para infância reflete relações de egoísmo e orgulho
Por Vinícius Vieira
Professor e jornalista

 Nada de princesas, príncipes, dragões ou reinos encantados para atrair crianças à narrativa teatral. Dessa vez, são as relações bélicas que norteiam o espetáculo “Dois idiotas sentados cada qual no seu barril”, da Borbolina Produções (SP). A peça, destinada ao público infantil, foi realizada na noite desta sexta-feira (25), no Teatro Barreto Júnior, para uma plateia modesta, mas esse não foi o maior desafio da encenação naquele dia.
Apresentar uma peça destinada aos pequeninos sem ao menos ter a presença de um deles como púbico pode ser uma experiência um tanto frustrante ou incômoda para os realizadores. De fato, foi estranho não ouvir as gargalhadas enérgicas e não ver corpinhos inclinados para frente na tentativa de apreender cada detalhe da encenação. Nos seus lugares, no entanto, uma audiência adulta para contemplar o trabalho da produção paulista.
Quem ali estava – ainda que alguns tivessem sido pegos de surpresa por não ser um espetáculo adulto, numa sexta-feira à noite, como comumente acontece na cidade – parece ter conseguido se conectar e se divertir com o trabalho exposto. Há na hora escolhida para a exibição da montagem um ruído. Descentralizar o “horário nobre vespertino” destinado ao público infantil é uma atitude louvável. Mas colocar uma peça para infância às 20h não nos parece uma escolha muito assertiva.
Dilemas de horário a parte, na ocasião, tanto os atores quanto a plateia pareciam ter encontrado a sincronicidade adequada. Foram íntegros no pacto estabelecido com o fenômeno cênico. Sem dúvida, um reflexo à disponibilidade e honestidade do elenco, formado pelos atores Paulo de Pontes e Giuliano Caratori. Mas não somente isso. O discurso abordado tem muito para ensinar aos grandões.
A encenação, assinada por Estella Tobar, fez um desvio corajoso e bem empreendido no que geralmente se costumar ver nas produções para crianças. Entraram em cena as relações de poder, de disputa, egoísmo, intransigência e intolerância - até um Fora Temer jocoso a partir da leitura soletrada de um jornal aconteceu. Afinal, o contexto político no qual vive o Brasil é prova irrefutável da atualidade e necessidade da obra em questão.
A peça quer estabelecer um diálogo crítico sobre o mudo e entende a criança como cidadã e também responsável pelo universo que a cerca. Aqui, ela não é o indivíduo do futuro. Seu tempo é o agora e, por isso, precisa estar inteirada, dentro das suas possibilidades, sobre os jogos de poder que estruturam a esfera social. A obra consegue estabelecer essa relação sem negligenciar as especificidades dessa fase da vida e sem ferir o potencial cognitivo daquele que assiste. Para isso, toca em assuntos ditos de “gente grande” com muita ludicidade, humor e metáfora. A forma de a produção encarar o trabalho para a infância coloca o Borbolina em compromisso com a humanidade, em responsabilidade com a vida.
No palco, dois palhaços, Mandão e Teimosinho, que rementem ao universo clownesco do Branco e Augusto, estão situados em campo de guerra e brincam como crianças resignificando objetos ao atribuir novas funções e sentidos para eles (um guarda-chuva vira espada, por exemplo), fazem jogos de rima e vivem situações divertidas.
A cenografia é composta por duas barracas vizinhas e dois barris de pólvora. Somado a isso, os dois personagens manipulam cada qual uma vela acesa, o que revela risco iminente de explosão. Entretanto, o perigo não está no objeto em sim, mas no coração, nas escolhas daqueles que o possui.  A composição visual do espetáculo também é formada por projeções em preto e branco em referência aos períodos de guerra na qual sofreu a humanidade. A tensão entre o registro histórico em contraponto as duas figuras que suscitam a infância nos faz temer o risco de um novo colapso mundial. Além disso, nos coloca em estranhamento quanto a atual educação em vigor, compromissada a formar sucessos e não pessoas que aprenderam a ser e sabem conviver em conjunto.
Sem ser panfletária, a peça ainda faz um alerta, com muita sutileza, às pedagogias bélicas naturalizadas. Elas estão presentes desde uma “inocente” arma de brinquedo que atira água, aos games que fazem a cabeça da geração Z.
A montagem estreou no ano passado no Sesc Ipiranga, em São Paulo. O texto levado aos palcos é uma adaptação do livro homônimo de Ruth Rocha, escrito sob o contexto da Guerra Fria entre Estados Unidos e Rússia. Em 2017, serão celebrados 50 anos de carreira da escritora e a encenação integrará uma série de atividades comemorativas.

Sebastiana e Severina

Literatura ganha a cena com o espetáculo Sebastiana e Severina
Por Vinícius Vieira
Professor e jornalista

Em meio a escuridão e ao silêncio, surge uma turma cheia de energia e cor. As vozes invadem a cena em cantoria e a plateia, de imediato, é fisgada pelo elenco de “Sebastiana e Severina”. O espetáculo foi levado ao palco do Teatro Barreto Júnior, no domingo (27), dia de despedida do 18° Festival Recife do Teatro Nacional.
A peça é uma adaptação do livro homônimo  e de texto dramatúrgico feito pelo pernambucano André Neves. O habilidoso Claudio Lira, que também assume a direção da obra, compôs, então, um terceiro texto com base nos escritos anteriores para realizar a montagem.
Uma marca das encenações contemporâneas é que elas têm se utilizado de textos não dramáticos como motivo principal ou pretexto para a criação de um espetáculo. Seguindo essa perspectiva, as duas últimas produções destinadas para a infância e juventude que pisaram no palco do “Barreto...” durante o festival também optaram por adaptações de livros. Foram as peças “Dois idiotas sentados cada qual no seu barril” e o encantador “O menino e a cerejeira”, ambos da atriz e diretora Stella Tobar.
Com as carismáticas e divertidas Sebastiana e Severina, somos levados a Umbuzeiro, Paraíba. É lá onde se desenrola a história das duas amigas rendeiras. O imaginário do sertanejo é descortinado através de cores, músicas, casinhas, roda gigante em miniatura e até uma cajuína - refrigerante a base de caju, bastante consumido no interior nordestino. As personagens centrais ganham duplos e viram bonecas em assertivo jogo que mescla teatro de animação e a fisicalização de papeis ficcionais em humanos.
Um dos momentos mais impactantes da encenação é a transformação das atrizes em Dona Zefinha, feiticeira da cidade, que ganha vida com a máscara vestida por mais de um intérprete. Nesse momento, há um fascinante magnetismo: a máscara se traveste de vida e ganha atenção plena. Os atores  Luiz Manuel, Célia Regina e Zuleika Ferreira se revezam para assumir, com muita competência, esse papel. Eles não deixam a desejar e emprestam toda corporeidade pedida para a ocasião, ampliação de gestos, direcionamento do olhar a partir do nariz e dilatação da energia.
A direção de arte é um mimo de Marcondes Lima ofertada a plateia que se deleita entre as cores e formas as quais preenchem o palco com harmonia e beleza. Sua maquiagem destaca os olhos do elenco com a cor branca, quase formando uma máscara, as feições têm formas que nos remetem aos bonecos e bonecas vendidos nas feiras de artesanato. Os vestidos das protagonistas são detalhados em fitas e têm estampas diferentes em algumas partes do corpo. Já os rapazes, usam calças e camisas em tons mais escuros, próximos ao marrom. A cenografia lembra cidade interiorana em festa com bandeirinhas de São João, gambiarra de luzes amareladas, e, ao fundo, uma espécie de oratório gigante com a imagem de São Sebastião no centro. Há uma verdadeira simbiose entre todos os elementos visuais da peça.
Para contar a história das rendeiras que buscam um amor, Claudio Lira optou por uma encenação musicada. A direção musical ficou a cargo de Demétrio Rangel, que também entra em cena como músico/ator. As canções apresentadas são baseadas nos ritmos nordestinos como o cavalo marinho, a macha junina e as levadas de toque da cultura afro.
Os atores se desdobram, ora narrando a história, ora vivendo as personagens. As transformações dos papéis são realizadas na frente da plateia, o que potencializa o jogo de faz de conta. O elenco é muito bem afinado quanto as interpretações. Há uma sincronicidade e generosidade entre todos em cena. Prova disso, é o prazer em realizar o ato teatral está impresso nos olhos dos artistas nos momentos em que procuram a plateia.
A todo instante, somos surpreendidos por um elemento novo que surge no palco, um boneco, uma janela que se abre ao fundo, um tecido azul transformado em mar que conduz um barquinho. E quando o silêncio mais uma vez se estabelece dando sinal que o enredo acabou, somos convidados a seguir a cantoria e o cotejo que desfila pela plateia. “Sebastiana e Severina” é, incontestavelmente, um espetáculo para crianças de todas as idades. 

Teodorico Majestade

Espetáculo bebe da cultura popular para contestar a corrupção
Por Vinícius Vieira
Professor e jornalista

As produções cênicas não têm passado ilesas sem serem afetadas em suas temáticas pelo panorama político os quais assolam o Brasil. Não foi diferente com o espetáculo baiano “Teodorico Majestade – As últimas horas de um prefeito”, encenado sob a batuta do Teatro Popular de Ilhéus (TPI), no Teatro Luiz Mendonça, no domingo (27). A peça encerrou, entre risos e músicas, o 18° Festival Recife do Teatro Nacional.
Na obra, escrita e dirigida por Romualdo Lisboa, o prefeito Teodorico tem suas atitudes corruptas estranhadas pela população que não se dobra as tentativas de silenciamento e coerção. A narrativa avança entre ações cômicas e canções tocadas ao vivo pelo próprio elenco, além das falas proferias por um ator/músico que, do proscênio, tece comentários ácidos perante os absurdos expostos. A montagem se alimenta da cultura popular, do cordel e, por isso, leva ao palco falas rimadas entre as personagens e xilogravuras para criar a ambientação.
Se por um lado a obra continua atual por sua vontade de estranhar as relações de privilégios e omissões dos governantes – dilema há muito não superado pela população brasileira, a qual lida com estratégias de corrupção em todas as esferas e subcamadas da composição social -, por outro, as piadas feitas pelas personagens, somadas as soluções cênicas, mostram a marca do tempo de um trabalho que soma dez anos de permanência. Sem dúvida, esse longo período precisa ser celebrado e honrado, mas também não seria o momento de refletir sobre algumas escolhas dramatúrgicas e da cena?
Embora os exaustivos, mas ainda insuficientes discursos acerca da pluralidade da subjetividade humana, estudos e reflexões que defendem a legitimidade das identidades de gênero e de sexualidade, a encenação opta por oferecer ao público o riso fácil com o estereótipo da “bicha” afetada, a qual conquista a simpatia alheia somente pelo “jocoso” jeito de ser. É “engraçado” porque foge à norma. É o caso do assistente do prefeito que protege o patrão e tenta camuflar seu desvio de caráter a todo custo. Está aí uma relação de subjugação e poder às identidades dissidentes que recebem, na obra, manutenção e permanece apenas pela possibilidade de provocar o risível.
O riso, aliás, surge de outro estímulo fácil: os palavrões, que se repetem como redes de segurança para garantir a alegria da plateia. Embora o recurso demasiadamente explorado, as situações conflitantes entre as personagens caricaturadas já conseguem a aderência do público pelas suas formas de ser. As figuras apresentadas já causam uma aproximação quase que imediata no espectador, o que torna o uso recorrente do palavrão, ao nosso olhar, desnecessário.
Na cena, as personagens são desenhadas com expressões faciais e ações dilatadas, exageradas. O corpo inteiro comunica um sentimento. Essa escolha interpretativa quer expor o ridículo e o absurdo das relações humanas e faz pensar sobre a frivolidade de certas atitudes, o egoísmo, a ganância. Essa vontade da produção interferir nos jogos de poder é tão intensa que chega a fazer da montagem uma obra panfletária.
Outra questão que merece um olhar atento é o ritmo do espetáculo, que entra, em vários momentos, em uma dilatação sem justificativa. Por vezes, a demora da concretização de uma ação - como acontece no início e final do espetáculo -, além das repetições dos mesmos dilemas entre as personagens tornam alguns pontos da encenação menos atraentes.

Vale destacar aqui a atuação do ator Ely Izidro, que interpreta com muita precisão, desenvoltura corporal e carisma o prefeito Teodorico. A peça, escrita em 2006, já circulou por várias cidades brasileiras e participou da Mostra Latino Americana de Teatro em São Paulo. Além disso, o espetáculo recebeu duas indicações no Prêmio Braskem de Teatro.