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A Renascer Produções Culturais organiza o Seminário Internacional de Crítica Teatral desde 2005 evento que reúne estudantes, profissionais e estudiosos de diferentes formações acadêmicas em um compartilhar de experiência, opinião e conhecimento dos mais diversos países, com o propósito maior de fazer avançar o desenvolvimento do discurso crítico sobre a criação teatral, em todo o mundo. O exercício da crítica de teatro como disciplina e a contribuição para o desenvolvimento das suas bases metodológicas constituem, assim, a prática do Seminário Internacional de Crítica Teatral, levada a cabo por críticos do teatro e uma gama de especialistas nas áreas de conhecimento que entrecruzam comunicação, história, filosofia, arte, literatura e teoria teatral, dentre outras. O Seminário Internacional de Crítica Teatral é um projeto que busca implementar no estado de Pernambuco um espaço permanente de debate sobre a estética teatral contemporânea. A edição 2011 tem como tema o Teatro fora dos Eixos. Todas as atividades desenvolvidas pelo seminário terão como base a discussão das poéticas cênicas que estão se propondo em produzir trabalhos que estão fora do cânone do teatro ocidental.

sábado, 3 de dezembro de 2016

Severinos, Virgulinos e Vitalinos

O Grande Círculo da Vida: o musical circense sob o olhar da Dispersos.

Por: Diego Albuck

Após uma excelente estreia em Recife com o espetáculo “Abraço – Nunca estaremos sós”, indicado a seis prêmios APACEPE, a Dispersos Cia de Teatro produz um novo trabalho que envereda por uma nova temática – a arte circense e o universo popular.

A convite do grupo, o dramaturgo e diretor Samuel Santos se juntou a trupe para encenar o espetáculo musical “Severinos, Virgulinos e Vitalinos” que teve sua estreia no 18 Festival Recife de Teatro Nacional.

Mesmo com o atraso de mais de dez minutos por conta de alguns ajustes, isso não pareceu ter afetado a encenação. Se a ansiedade existiu por conta da estreia, esta foi transformada em uma entrega genuína por aqueles dois jovens, Lívia Lins e Madson de Paula que interpretavam os personagens principais que nos saudavam e convidavam para adentrar naquele universo mágico.

O texto nos mostra a saga de dois sertanejos, Muriqueta e Tramboeta, dois jovens, filhos de pais artistas que se conhecem e se deparam com um
sonho em comum – encontrar seus pais que fugiram com o circo.

A realidade do sertanejo é posta em cena na mais pura poesia através dos personagens que não se abatem com a tristeza do sertão, mas são fortalecidos pela fé que os move tanto em encontrar seus parentes, como também em seres artistas. Nem a dureza vista nos personagens da Morte, a Severina, da Violência, o Virgulino e do sonho, Vitalino, conseguem tirar o foco dos retirantes em seguir sua jornada. Pelo contrário, estes personagens os fortalecem ajudando-os na busca de seus sonhos e também de si próprios.

A concepção artística do espetáculo trazida por Álcio Lins é riquíssima, visto que todos os objetos cênicos são móveis e de fácil acesso para troca de personagens e mudanças de cena. É de um primor cênico quando vemos todo o cenário montado pelos atores tal qual um picadeiro circense. A estética dos figurinos me trouxe com bom saudosismo a montagem de Marco Camarotti do “Auto da Compadecida”, com tons crus, marrons e um certo colorido nas vestes dos personagens.

A luz é um show a parte, onde as tonalidades azul e vermelha se unem a várias outras pintando e moldando a história encenada por Samuel. Vale frisar que na cena da noite fria do sertão, a
iluminação invade toda a plateia e todos os espectadores comungam com aquela beleza e singeleza do céu estrelado que toma conta do teatro.
O projeto de iluminação é uma técnica somente usada nos Estados Unidos, “Laser Blisslight”, em que uma única luz projeta milhares de pontos luzes instantânea. Esta técnica foi trazida pelo iluminador Cleison Ramos que, com grande maestria, utiliza em alguns de seus projetos.

É importante ressaltar que os intérpretes estão brilhantes em cena, o trabalho vocal de Madson e Lívia é espetacular, pois ambos sabem dar os tons necessários a cada canção seja esta mais grave ou aguda. O trabalho corporal também é excelente, visto que percebemos na troca de personagens, uma marca gestual bem definida para cada um.

Se na interpretação ganhamos grandes momentos do espetáculo, na narrativa o texto fica cansativo, principalmente na cena da Severina em que nas primeiras falas já fica claro o seu propósito de mostrar o castigo da seca, mas esta se prolonga muito nos exemplos dados, dando uma repetição desnecessária, deixando a cena cansativa e quebrando o ritmo do espetáculo.

Os atores em todo o tempo do espetáculo são acompanhados por músicos, a Bandinha, composta por Danielle Sena, Tiago Nunes, Victor Chitunda e
Leila Chaves, que fazem o acompanhamento musical.

A direção musical de Victor Chitunda e Leila Chaves é de um primor em detalhes, visto que apresentam um repertório autoral atrelado a algumas referências ao universo popular. Além disso, cada componente da banda se desdobram em tocar mais de quatro instrumentos, assim como cantam quase todas as músicas do espetáculo o que mostra os talentos múltiplos daqueles artistas.

Se o papel da Bandinha é peculiar no desenrolar do espetáculo, pois ajudam os retirantes a contarem suas histórias, isso não foi tão bem visto em cena por conta de alguns atores. Em alguns momentos do musical, víamos momentos de dispersão, onde os músicos pareciam apenas esperar uma marca para entrar em cena, ao invés de prestar atenção à história que estava sendo narrada. Salvo, a atriz Danielle Sena, que mostrava estar atenta ao que estava ocorrendo. Como por exemplo, suspirar a cada fagulha de paixão que nascia entre os personagens.

Um ponto positivo na narrativa do espetáculo é que ambos os personagens no final não encontram aquilo que estavam procurando. Eles se encontram e é exatamente aí onde tudo se constrói. O passado já não era mais necessário diante a um novo futuro que se formava. De agora em diante, os dois juntos iriam
construir o seu circo e a sua carroça, abrindo assim um leque de infindas possibilidades e grandes jornadas que estariam por vir.

“Severinos, Virgulinos e Vitalinos”, mostra que a Dispersos Cia de Teatro vem solidificando o seu papel na busca de produzir novos textos e repertórios autorais, trazendo em cena e fora dela artistas plurais que desenvolvem múltiplas habilidades artísticas. Desejo todo o sucesso a este grupo e espero ver mais trabalhos destes na cena

NÓS

A última ceia do Galpão

Por: Diego Albuck



Em sua 23ª montagem o grupo Galpão traz ao Recife um banquete recheado de questões atuais que recriam o nosso cenário político atual.

O espetáculo se torna tão coevo quanto às discussões que escuto em transportes públicos, praças e no meu local de trabalho com temas como: intolerância, democracia, partidarismo, violência, dentre outras questões que convivem com os brasileiros.

Enquanto preparam a sua ceia, uma sopa de legumes e verduras, sete vozes heterogêneas e polifônicas travam um grande debate tomando como ponto de partida o existencialismo humano.

Por mais que estejam compartilhando de um mesmo local, percebemos as angústias individuais de cada personagem que se veem solitários e impotentes a tantas atrocidades que os envolvem como, por exemplo, o fato de um negro ser humilhado em um ponto de ônibus, um menino-bomba e negros sendo fuzilados pela polícia.

O protesto do ser humano em poder decidir em função da sua própria vontade isenta de qualquer
causa determinante, a partir da ausência de um ser superior que nos julga e castiga se errarmos moralmente, é visto em forma performática na interpretação da música Lama de Paulo Marques, interpretada por Núbia Lafayette. A liberdade de fazer o quer e o que deseja está na essência humana, assim como diz Sartre o homem sempre pode escolher entre aceitar a sua sorte ou revoltar-se contra ela e isso é permeado nas falas e interpretações de cada personagem que, sem identidade definida, colocam suas questões ante a realidade que os cerca.

A atriz Teuda Barra protagoniza uma das cenas mais icônicas da peça – a recriação do impeachment da presidenta Dilma Rousseff. Por meio de votação, os personagens decidem a saída da personagem do palco, sem o seu o total consentimento. Se negando veementemente a sair, ela é expulsa de maneira brutal, o que nos faz rememorar os últimos meses que ficarão registrados nos anais da história do nosso país.

É importante ressaltar a importância da atriz que, no auge dos seus setenta e cinco anos, dá vida a um personagem vivo, intenso, questionador que sofre todos os tipos de humilhação por ser mulher, idosa e a não aptidão para o mercado de trabalho. Mesmo assim a figura dramática se mostra forte, decidida frente as suas convicções ideológicas.

Já prestes a coroar a celebração da comunhão em que os personagens compartilham a sopa com o público, eles reconhecem que não há caminho para ir, a não ser seguir, sendo a única alternativa é de apostar na criação de uma nova realidade.

A ceia de Márcio Abreu consegue, principalmente para quem acompanha o espetáculo no palco, a representação das reações físicas e emocionais mais profundas dos personagens com uma maestria espetacular, trazendo experiências sensoriais magníficas tal qual inalar o bom cheiro da alimentação.

O espetáculo é belíssimo em todos os âmbitos que se propõe, seja na representação de seus personagens, no discurso ou na encenação. A utopia de vislumbrar um mundo onde todos possam compartilhar e conviver com suas diferenças independentes de suas crenças religiosas ou políticas e nos desatar dos nós que nos prende é mais um sopro de que ainda existe esperança para a humanidade.Consegue representar as reações físicas e emocionais mais profundas com uma perfeição espetacular.

Medida por Medida

A obra de Shakespeare sob o olhar do Teatro Popular de Ilhéus

Por: Diego Albuck


Com a incumbência de representar Shakespeare, o grupo baiano Teatro Popular de Ilhéus traz um espetáculo baseado em uma peça trágica do autor inglês – Medida por Medida. O texto retrata o abuso do poder na Administração Pública e temas como traição, sexo e moralidade.

A história se passa em Viena, lugar onde a luxúria se tornou prática em todos os membros da sociedade. Ante a tal prevaricação, o Duque resolve extirpar esse mal. Com medo de ser mal interpretado, coloca Ângelo como seu substituto, um homem correto e que não teria problemas de aplicar a lei contra a imoralidade. Dessa forma, o bom homem ao colocar em prática o que fora ordenado condena Cláudio por engravidar Julieta. Inconformado, ele pede a Lúcio, seu amigo, que convença Isabela, sua irmã a defendê-lo. É com esse quiprocó que o grupo baiano conta a sua versão da história através de um espetáculo comediante.



Com o propósito de transformar a tragédia inglesa em literatura de cordel, gênero literário popular originado em relatos orais e rimado, os atores nos contam a história através de causos, cantos e muita música. Viena é transportada para o Nordeste brasileiro e ficamos com a impressão que a história realmente aconteceu aqui.

A plasticidade cênica da peça é algo magistral, os figurinos e adereços de Shicó do Mamulengo e de Justino Vianna são um espetáculo a parte, pois apresentam peças impecáveis onde parece que cada tecido conta sua própria história. Como por exemplo, a indumentária da Julieta que traz uma barriga que acende e nela contém um menino dentro. É importante ressaltar que a presença de Julieta causa gargalhadas do público.

A criação da maquiagem de Justino Vianna, também é impecável. Os atores se transformam em figuras escultóricas que servem de referência para nos situarmos acerca dos costumes da época.

Num espetáculo com tantos acertos, um dos maiores problemas do espetáculo se dá justamente na transposição de tragédia para a comédia. A adaptação da obra shakespeariana para o gênero popular feita pelos diretores Romualdo Lisboa e Fernando Yamamoto (Clowns de Shakespeare), peca por querer popularizar demais a obra. A fala, muitas
vezes, parecia estar mais em serviço de uma rima do que na função de contar propriamente a história, fazendo com que a narrativa ficasse confusa e perdida.

A direção musical de Eleiton Cabeça e Marco França (Clowns de Shakespeare) também se mostra equivocada quanto a sua execução. Com um repertório belíssimo, parte das músicas ficava ininteligível por conta da altura dos instrumentos diante da projeção de voz dos atores. Em muitos momentos se fazia dispensável o uso do microfone, este que se tornara um inimigo mortal para o entendimento da música.

Creio que todos os problemas citados são sanados através de pequenos ajustes, estes que se afinar com o restante poderão fazer a direção de Romualdo Lisboa crescer e abrilhantar ainda mais.

O menino e a Cerejeira

A poética humanista do Menino e a Cerejeira

Por: Diego Albuck


Com uma montagem inédita no mundo, a Borbolina Produções e La Rô trazem a Recife o belíssimo espetáculo “O menino e a Cerejeira” adaptado do livro homônimo do autor japonês Ikeda Daisaku.

A obra conta a história de Taiti, um garoto que vive em meio aos destroços deixados pela Segunda Guerra Mundial. Com a perda do pai para a guerra, sua mãe trabalha numa estação de trem engraxando sapatos. Por sua mãe trabalhar o dia todo, o menino fica sempre sozinho em casa e sempre desobedece a mãe saindo para brincar fora do seu barraco. Em uma dessas saídas, conhece um senhor que cuida de uma única cerejeira sobrevivente. Assim, nasce uma amizade entre o garoto e o senhor que encaram a missão de cuidar da árvore que não dá flores.

A adaptação, direção e idealização de Stella Tobar é espetacular em tudo o que se propõe. Se o texto já traz uma riqueza poética através de mensagens humanistas para jovens e crianças, a transposição para o palco transcende ainda mais o propósito da obra literária.

O espetáculo é divido em inúmeras metáforas que conduzem o espetáculo com maestria e leveza que emocionam a quem esteja assistindo.

No começo do espetáculo os atores contam a estória do pássaro e da gaiola. A fábula narra a primeira experiência do pássaro em voar em que a ave fica presa em uma gaiola esperando o momento exato para voar. Tal simbologia pode ser comparada com o personagem principal que vive preso em casa por conta dos perigos da rua após a guerra.

“A gente já nasce sabendo a voar, só precisa relembrar”, Taiti sabia voar, mas também compreendia os limites desse voo. Tanto que tinha plena consciência que estava desobedecendo às ordens de sua mãe em não sair de casa. Mas, o desejo de voar era mais forte e para voar era preciso correr riscos e o garoto estava disposto a cruzar todos eles.

Ao se perder de seu amigo, Taiti encontra um senhor que logo percebe a tristeza iminente no menino. Ambos sentem uma empatia inexplicável que fazem com que os dois não se separem mais. O velho, todos os dias, cuida da cerejeira que não floresce, na esperança de que esta venha a florescer novamente.
Essa fé é desprezada pelos moradores da vila que não acreditam que a cerejeira prosperará. Mas, a persistência do senhor é inabalável tanto que a
mesma fé é depositada no garoto que começa a nutrir o desejo de ajudar o seu “avô” naquela empreitada.

Todas as cenas parecem ter sido feitas sob medida. A singeleza e o olhar de Stella Stobar e a interpretação magistral de Alle Paixão, Cleber Tolini, Guiliano Caratori e do ator pernambucano Paulo de Pontes dão o tom mais que exato a poesia do espetáculo. É de embasbacar a preparação dos interpretes, tanto no quesito vocal, corporal e também musical, já que todos tocam instrumentos em cena.

O cenário e figurinos de Paula de Paoli também são de uma delicadeza magnífica, com a indumentária que se assemelha as ornamentações dos orientais. Outro ponto positivo é a facilidade com que o figurino se transforma à medida que os atores mudam de personagem.

A iluminação de Giuliano Caratori é de uma naturalidade belíssima que quando imersa no palco ajuda a dar as nuances precisas de cada lugar e espaço. Como por exemplo, a chegada do inverno onde o foco de luz azul é inserido no pano branco que cobre a árvore refletindo uma das uma das imagens mais emblemáticas do espetáculo.

E depois do inverno a cerejeira finalmente floresce e renova a esperança daqueles que a aguardavam. Esse evento é cultuado pelos japoneses há mais de mil anos, pois eles veem nos frutos da cerejeira a representação da renovação do espírito e a efemeridade da vida. É nesse momento que temos o momento mais lindo do espetáculo o abraço de Taiti e seu avô, o que causa comoção e aplausos da plateia. O menino ali tinha aprendido o valor da esperança e estava pronto para seguir seu destino.

A forma lúdica e a riqueza em detalhes de cada profissional envolvido fazem com que a peça seja inesquecível. Assim quando entrei ao Teatro Barreto Junior fui bem recebido pelas produtoras que estavam entregando os programas e o livro para as crianças. As duas me trataram tão bem que me senti como criança novamente, espevitada e espirituosa. Vale ressaltar que ambas estavam desobedecendo às ordens, pois aqueles materiais eram para ser entreguem somente as crianças. No entanto, tinha pedido para elas, pois queria saber um pouco mais do espetáculo para escrever minha crítica. Escondido, elas me entregaram e ali fazíamos nosso pequeno pacto de silêncio.

O espetáculo é inspirador em vários sentidos e se torna imprescindível para todas as pessoas de qualquer idade, pois traz uma beleza poética que necessita ser vista e apreciada. No momento em que
estamos passando em nível de Brasil e mundo, “O Menino e a Cerejeira” se torna um acalanto em nossos corações onde a poesia é pulsada, sentida e exalada por todos os poros.

FISHMAN

O heterodiálogo em Fishman
Por Diego Albuck


O Grupo Bagaceira atraca em Recife com o seu mais recente espetáculo Fishman em comemoração aos seus quinze anos de existência. Com mais um trabalho autoral, marca já conhecida do grupo, a peça propõe uma reflexão sobre a complexidade da existência humana.

Dois homens sentados em um bote frente a frente à procura de uma palavra para estreitarem um diálogo essa é a premissa que nos apresenta os atores Ricardo Tabosa e Rogério Mesquita. Há um desconforto de ambos em tentar encontrar um vocábulo perfeito, dentre tantas coisas para dizer, o silêncio é cheio de palavras e aparece como uma privação involuntária dos seres. Nenhum assunto é fisgado, acabado, dito.

Os personagens ora se contradizem, ora se completam numa flutuação de ideias e pensamentos que transcendem qualquer racionalização mais precisa. Eis o complexo horizonte do diálogo e não diálogo.

Não é simples a relação entre aqueles seres, nem o tempo é exato. No entanto, há uma tentativa entre os dois de se reconciliar diante do abandono e da
solidão sofridos. Há também um desejo de se reencontrar, um esforço de reconstituir um laço perdido. Mas, não há fluidez no entendimento e no passar do tempo à fala se torna angustiante por parecer que nada ali se encaixa, nem mesmo um simples abraço.

Ao se colocarem de frente, os personagens se tornam espelhos de si mesmo, ambos os desdobramentos de si. Quando se veem, há uma perda da imagem do eu, de si mesmo, restando apenas a procurar quem se é. A relação se constrói na busca do ser no outro, tanto o outro, o diferente, quanto o outro de si mesmo, assim como os outros imaginários. Pois, sempre existirá o outro. E é nesse conceito de heterodiálogo que o espetáculo se sustenta.

A excelente dramaturgia de Rafael Martins traz uma estrutura não linear que apresenta múltiplos caminhos e destinos entre aqueles seres solitários associados à belíssima imagética que a direção de Yuri Yamamoto constrói a partir de imagens e sensações que permeiam todo o espetáculo.

A plasticidade do cenário cria cenas visualmente instigantes que, a princípio, podem causar estranheza, mas logo desperta empatia a quem assiste. Como por exemplo, o bote que nos traz uma sensação de pertencimento e segurança, mas também de medo e perigo. Ali se trava o embate do ser,
seres, onde a qualquer momento é mais possível se afogar dentro dele do que fora.

Em Fishman, o espectador é provocado, questionado e convidado a todo o tempo a mergulhar e navegar nas águas mais profundas do ser, trazendo umas das mais lindas reflexões sobre a vida.

Vento Forte Para Água e Sabão

A metáfora da morte em
Vento Forte Para Água e Sabão

Por: Diego Albuck


Com foco na dramaturgia pernambucana e novos processos dramatúrgicos, a Companhia Fiandeiros de Teatro traz o espetáculo infanto-juvenil “Vento Forte Para Água e Sabão”, um texto assinado pelos dramaturgos Giordano Castro e Amanda Torres.

O texto nasceu de um curso de dramaturgia “Na Fronteira das Linguagens” proposto pelo dramaturgo pernambucano Luiz Felipe Botelho pela Fundação Joaquim Nabuco. A proposta do curso era unir o exercício da escrita teatral interpenetradas a linguagens diversas, como por exemplo, a dos contadores de histórias, cinema e televisão. Das práticas obtidas no curso, os dramaturgos desenvolveram a dramaturgia teatral do espetáculo.

A peça narra à história de Bolonhesa, uma medrosa bolha de sabão que tem medo de estourar. Sua perspectiva sobre a sua frágil vida muda ao conhecer Arlindo, uma rajada de vento aventureira que a propõe uma ousada viagem na busca de conhecer as belezas do mundo.


Os atores Daniela Travassos e Mauro Monezi que dão vida a Bolonhesa e Arlindo, ao longo da jornada, convivem o tempo todo com o perigo da morte através dos obstáculos que encontram, tais como: pedras, árvores, poluição e até mesmo crianças espevitadas que adoram estourar bolhas de sabão.

Com uma experiência de atuação em espetáculos infanto-juvenis, Daniela consegue encontrar os tons exatos da personagem fazendo com que ora fiquemos com raiva da indecisão da personagem e ora embarquemos no passeio pelo desconhecido. A entrada de Mauro Monezi ao espetáculo, visto que a rajada era feita por Tiago Gondim, não causa estranhamento a quem já viu a peça duas vezes como eu.

E os dois amigos vão seguindo além de todos os limites conhecendo o mundo e esbarrando com encantadores personagens que deixam a sua linda contribuição na história da bolhinha. É interessante frisar que cada personagem se apresenta de modo único e particular, trazendo suas nuances tais quais os engraçadíssimos e refinadíssimos algodões-doces.

À priori, a pequena bolha se sente amedrontada ao perceber que está constantemente exposta aos perigos, mas a companhia do novo amigo e a sede de
desvendar os mistérios do mundo a tornam mais madura e consciente sobre a sua existência passageira.

A entrega dos atores, Victor Chitunda, Kéllia Phayza, Geysa Barlavento e Ricardo Angeiras, em dar vida a todos os personagens são de uma riqueza extremamente poética, pois todos conseguem dar cor, ritmo e brilhar cada um ao seu modo.

É importante destacar a disciplina e concentração do múltiplo artista Victor que além da interpretação, dança, canta e ainda toca o violão em cena. Assim como a belíssima interpretação de Kéllia e Ricardo ao dar vida a um casal de apaixonados, protagonizando uma das cenas mais lindas do espetáculo.

Parabenizo também, a cronicidade e precisão de Geysa ao interpretar três personagens diferentes em tão curto espaço de tempo. Em três cenas consecutivas, a atriz interpreta a engraçadíssima Briseida, o ingênuo Capim Santo e uma criança correndo. Tudo isso acontece com as devidas trocas de figurinos numa exatidão milimetricamente correta e uma interpretação brilhante.

A direção musical de Samuel Lira e a composições de André Filho e Giordano Castro são um espetáculo a parte. As músicas são lindas, singelas e de fácil
assimilação tanto que em muitos momentos me vi cantarolando todas das músicas.

Outro ponto positivo do espetáculo é a funcionalidade do figurino. As caracterizações da bailarina e do caboclo de lança são fantásticas, pois conseguem traduzir em indumentária a essência dos personagens Bolonhesa e Arlindo, além de trazer uma pernambucanidade ao espetáculo.

O único incômodo se dá em relação à vestimenta geral, os macacões jeans e a blusa branca. Em cada peça, os atores tem um adesivo constando o nome real dos atores, o que causa estranhamento, pois em nenhum momento do espetáculo se faz alusão aos nomes deles, fazendo com que o adesivo não exerça função nenhuma na história.

Se o espetáculo é rico em imagens, música e interpretação o mesmo não acontece com a direção de arte. A direção assinada por João Denys e Manuel Carlos é tão simplória que empobrece o espetáculo. O cenário aparenta estar não estar acabado e muito mal cuidado. Como por exemplo, o colorido tecido que cobrem os tablados que são tão apagados que em nada dialogam com a história.

Outro ponto negativo do cenário é o grande círculo que fica atrás dos tablados que aparenta sequer estar finalizado fazendo com que a plasticidade da peça
fique totalmente comprometida por conta desses descasos.

A iluminação de João Guilherme de Paula também em nada corrobora em embelezar a história. Os tons escolhidos são simples, com pequenos focos de luz nada faz, pois parecem estar ali somente por estar.

Contudo, mediante a esses contratempos na encenação, Vento Forte Para Água e Sabão traz em sua poética, muito bem dirigida por André Filho, um tema bastante delicado para os adultos – a morte.

A morte faz parte do ciclo natural da vida do ser humano e a metáfora exalada pelo espetáculo se torna uma excelente oportunidade para os adultos conversarem com as crianças sobre o assunto. A singeleza com que Bolonhesa se despede daquele universo é de uma delicadeza descomunal onde a bolha aceita a sua morte, todavia não como um fim da vida, mas com uma chance de transformação.

O MENINO E A CEREJEIRA

Quando o melhor adubo é o tempo e a resiliência
Por Vinícius Vieira
Professor e jornalista

Um pássaro de origami, manipulado por um ator, pousa suavemente na mão do menino Taiti, sentado em frente a uma cerejeira. Após breve estadia, a ave alça voo pelos céus da cena arrancando um doce sorriso do garoto em momento sublime. Em outro instante, a mesma cerejeira é banhada em flocos suaves de neve que caem, delicadamente, das mãos de outro ator, regando os galhos e formando um manto branco e gélido sobre a planta. A lua e o sol, representados por sombrinhas, cruzam a cena revelando a passagem da noite para o dia. É assim, com muita poesia, que a escritura cênica de “O menino e a cerejeira” estabelece uma relação amistosa com o tempo, enlace diferente ao que a cultura ocidental está acostumada a viver.

 A peça foi apresentada no sábado (26), no Teatro Barreto Júnior, compondo a grade de espetáculos do 18° Festival Recife do Teatro Nacional. O marco zero da encenação é o livro homônimo do escritor Daisaku Ikeda. A propósito, é a primeira vez que a obra é adaptada e levada aos palcos.

No referido evento, Stella Tobar tem se mostrado como uma exímia diretora, preocupada em levar ao público infantil temáticas caras à existência humana. No mesmo teatro, Tobar também encenou “Dois idiotas sentados cada qual no seu barril”, na noite anterior - outro trabalho erigido a partir de adaptação da literatura para o universo teatral. A artista tem se posicionado no lugar para além das montagens de contos de fadas ou duplos, no teatro, de personagens que povoam o cinema e a TV.

O protagonista da peça, Taiti, mora em um povoado com sua mãe em uma vida nada fácil após a morte do pai em período de guerra. Sua genitora precisa trabalhar e, para isso, deixa-o sozinho em casa. O menino passa o dia só, sem a supervisão de um adulto. Ele tem momentos de melancolia e sofre com a ausência paterna. Não fosse a presença de um amigo que o estimula a sair de casa para brincar, os dias poderiam ser ainda mais penosos.

A história é desenrolada entre as estruturas épica e dramática. Os atores, ora narram as vivências da personagem, tecendo comentários, ora vivem na pele dos seres ficcionais em um divertido jogo de antecipar acontecimentos e realizar as situações. Por vezes, as próprias personagens verbalizam sobre si mesmas e quebram a quarta parede estabelecendo contato próximo ao público. Aliás, nesses momentos, Taiti consegue nos arrebatar com sua simpatia e também com seus conflitos existenciais puramente humanos acerca da solidão, a saudade, o medo, a morte.

A encenação é inteligente e goza de escolhas assertivas para estabelecer trocas de lugares e alterações de tempo: Taiti “corre” parado no centro do palco, enquanto biombos movidos pelos atores transformam o cenário ao fundo com poucos, mas sugestivos, elementos de cena; Caminhadas circulares também são usadas em uma repetição de ações entre o garoto e sua mãe para designar a passagem dos dias em marcações ágeis, as quais contrastam com a dilatação do tempo em momentos pontuais da peça. Uns aos outros, no elenco, se ajudam na composição de personagens ativadas a partir de um adereço utilizado, pequena mudança na indumentária aciona outro figura ficcional.

A montagem é marcada por diversos momentos de soluções cênicas simples, mas encantadoras. É muito interessante a tradução do estado emocional de Taiti posto em cena, metaforicamente, pelas batidas dos tambores que intercala sua fala aflita. No trabalho, ter espaço para falar sem receios sobre a dor, encarando as dificuldades como elas de fato são, é, sem dúvida, um de seus maiores méritos. Pelo filtro da ludicidade, as crianças acessam a dicotomia entre limitação e fé, morte dos sonhos e esperança.

Não foi difícil perceber a intensa interação da plateia com o espetáculo. Crianças chamavam por Taiti, riam em uníssono, comentavam as interações das personagens. Já os adultos, se entreolhavam com expressões de encantamento e surpresa perante a delicadeza da obra. Em dado momento, houve até aplauso em cena aberta após o protagonista abraçar a mãe, acariciando, na verdade, a alma de todos que ali estavam.

“O menino e a cerejeira” é um afago, respiro em meio as intempéries da vida. Sem dúvida, merece ser visto por todos aqueles que desejam relembrar que são pássaros.

Assista ao trailer do espetáculo: https://www.youtube.com/watch?v=hyPNnwrZUpQ 

Dois idiotas sentados

Teatro para infância reflete relações de egoísmo e orgulho
Por Vinícius Vieira
Professor e jornalista

 Nada de princesas, príncipes, dragões ou reinos encantados para atrair crianças à narrativa teatral. Dessa vez, são as relações bélicas que norteiam o espetáculo “Dois idiotas sentados cada qual no seu barril”, da Borbolina Produções (SP). A peça, destinada ao público infantil, foi realizada na noite desta sexta-feira (25), no Teatro Barreto Júnior, para uma plateia modesta, mas esse não foi o maior desafio da encenação naquele dia.
Apresentar uma peça destinada aos pequeninos sem ao menos ter a presença de um deles como púbico pode ser uma experiência um tanto frustrante ou incômoda para os realizadores. De fato, foi estranho não ouvir as gargalhadas enérgicas e não ver corpinhos inclinados para frente na tentativa de apreender cada detalhe da encenação. Nos seus lugares, no entanto, uma audiência adulta para contemplar o trabalho da produção paulista.
Quem ali estava – ainda que alguns tivessem sido pegos de surpresa por não ser um espetáculo adulto, numa sexta-feira à noite, como comumente acontece na cidade – parece ter conseguido se conectar e se divertir com o trabalho exposto. Há na hora escolhida para a exibição da montagem um ruído. Descentralizar o “horário nobre vespertino” destinado ao público infantil é uma atitude louvável. Mas colocar uma peça para infância às 20h não nos parece uma escolha muito assertiva.
Dilemas de horário a parte, na ocasião, tanto os atores quanto a plateia pareciam ter encontrado a sincronicidade adequada. Foram íntegros no pacto estabelecido com o fenômeno cênico. Sem dúvida, um reflexo à disponibilidade e honestidade do elenco, formado pelos atores Paulo de Pontes e Giuliano Caratori. Mas não somente isso. O discurso abordado tem muito para ensinar aos grandões.
A encenação, assinada por Estella Tobar, fez um desvio corajoso e bem empreendido no que geralmente se costumar ver nas produções para crianças. Entraram em cena as relações de poder, de disputa, egoísmo, intransigência e intolerância - até um Fora Temer jocoso a partir da leitura soletrada de um jornal aconteceu. Afinal, o contexto político no qual vive o Brasil é prova irrefutável da atualidade e necessidade da obra em questão.
A peça quer estabelecer um diálogo crítico sobre o mudo e entende a criança como cidadã e também responsável pelo universo que a cerca. Aqui, ela não é o indivíduo do futuro. Seu tempo é o agora e, por isso, precisa estar inteirada, dentro das suas possibilidades, sobre os jogos de poder que estruturam a esfera social. A obra consegue estabelecer essa relação sem negligenciar as especificidades dessa fase da vida e sem ferir o potencial cognitivo daquele que assiste. Para isso, toca em assuntos ditos de “gente grande” com muita ludicidade, humor e metáfora. A forma de a produção encarar o trabalho para a infância coloca o Borbolina em compromisso com a humanidade, em responsabilidade com a vida.
No palco, dois palhaços, Mandão e Teimosinho, que rementem ao universo clownesco do Branco e Augusto, estão situados em campo de guerra e brincam como crianças resignificando objetos ao atribuir novas funções e sentidos para eles (um guarda-chuva vira espada, por exemplo), fazem jogos de rima e vivem situações divertidas.
A cenografia é composta por duas barracas vizinhas e dois barris de pólvora. Somado a isso, os dois personagens manipulam cada qual uma vela acesa, o que revela risco iminente de explosão. Entretanto, o perigo não está no objeto em sim, mas no coração, nas escolhas daqueles que o possui.  A composição visual do espetáculo também é formada por projeções em preto e branco em referência aos períodos de guerra na qual sofreu a humanidade. A tensão entre o registro histórico em contraponto as duas figuras que suscitam a infância nos faz temer o risco de um novo colapso mundial. Além disso, nos coloca em estranhamento quanto a atual educação em vigor, compromissada a formar sucessos e não pessoas que aprenderam a ser e sabem conviver em conjunto.
Sem ser panfletária, a peça ainda faz um alerta, com muita sutileza, às pedagogias bélicas naturalizadas. Elas estão presentes desde uma “inocente” arma de brinquedo que atira água, aos games que fazem a cabeça da geração Z.
A montagem estreou no ano passado no Sesc Ipiranga, em São Paulo. O texto levado aos palcos é uma adaptação do livro homônimo de Ruth Rocha, escrito sob o contexto da Guerra Fria entre Estados Unidos e Rússia. Em 2017, serão celebrados 50 anos de carreira da escritora e a encenação integrará uma série de atividades comemorativas.

Sebastiana e Severina

Literatura ganha a cena com o espetáculo Sebastiana e Severina
Por Vinícius Vieira
Professor e jornalista

Em meio a escuridão e ao silêncio, surge uma turma cheia de energia e cor. As vozes invadem a cena em cantoria e a plateia, de imediato, é fisgada pelo elenco de “Sebastiana e Severina”. O espetáculo foi levado ao palco do Teatro Barreto Júnior, no domingo (27), dia de despedida do 18° Festival Recife do Teatro Nacional.
A peça é uma adaptação do livro homônimo  e de texto dramatúrgico feito pelo pernambucano André Neves. O habilidoso Claudio Lira, que também assume a direção da obra, compôs, então, um terceiro texto com base nos escritos anteriores para realizar a montagem.
Uma marca das encenações contemporâneas é que elas têm se utilizado de textos não dramáticos como motivo principal ou pretexto para a criação de um espetáculo. Seguindo essa perspectiva, as duas últimas produções destinadas para a infância e juventude que pisaram no palco do “Barreto...” durante o festival também optaram por adaptações de livros. Foram as peças “Dois idiotas sentados cada qual no seu barril” e o encantador “O menino e a cerejeira”, ambos da atriz e diretora Stella Tobar.
Com as carismáticas e divertidas Sebastiana e Severina, somos levados a Umbuzeiro, Paraíba. É lá onde se desenrola a história das duas amigas rendeiras. O imaginário do sertanejo é descortinado através de cores, músicas, casinhas, roda gigante em miniatura e até uma cajuína - refrigerante a base de caju, bastante consumido no interior nordestino. As personagens centrais ganham duplos e viram bonecas em assertivo jogo que mescla teatro de animação e a fisicalização de papeis ficcionais em humanos.
Um dos momentos mais impactantes da encenação é a transformação das atrizes em Dona Zefinha, feiticeira da cidade, que ganha vida com a máscara vestida por mais de um intérprete. Nesse momento, há um fascinante magnetismo: a máscara se traveste de vida e ganha atenção plena. Os atores  Luiz Manuel, Célia Regina e Zuleika Ferreira se revezam para assumir, com muita competência, esse papel. Eles não deixam a desejar e emprestam toda corporeidade pedida para a ocasião, ampliação de gestos, direcionamento do olhar a partir do nariz e dilatação da energia.
A direção de arte é um mimo de Marcondes Lima ofertada a plateia que se deleita entre as cores e formas as quais preenchem o palco com harmonia e beleza. Sua maquiagem destaca os olhos do elenco com a cor branca, quase formando uma máscara, as feições têm formas que nos remetem aos bonecos e bonecas vendidos nas feiras de artesanato. Os vestidos das protagonistas são detalhados em fitas e têm estampas diferentes em algumas partes do corpo. Já os rapazes, usam calças e camisas em tons mais escuros, próximos ao marrom. A cenografia lembra cidade interiorana em festa com bandeirinhas de São João, gambiarra de luzes amareladas, e, ao fundo, uma espécie de oratório gigante com a imagem de São Sebastião no centro. Há uma verdadeira simbiose entre todos os elementos visuais da peça.
Para contar a história das rendeiras que buscam um amor, Claudio Lira optou por uma encenação musicada. A direção musical ficou a cargo de Demétrio Rangel, que também entra em cena como músico/ator. As canções apresentadas são baseadas nos ritmos nordestinos como o cavalo marinho, a macha junina e as levadas de toque da cultura afro.
Os atores se desdobram, ora narrando a história, ora vivendo as personagens. As transformações dos papéis são realizadas na frente da plateia, o que potencializa o jogo de faz de conta. O elenco é muito bem afinado quanto as interpretações. Há uma sincronicidade e generosidade entre todos em cena. Prova disso, é o prazer em realizar o ato teatral está impresso nos olhos dos artistas nos momentos em que procuram a plateia.
A todo instante, somos surpreendidos por um elemento novo que surge no palco, um boneco, uma janela que se abre ao fundo, um tecido azul transformado em mar que conduz um barquinho. E quando o silêncio mais uma vez se estabelece dando sinal que o enredo acabou, somos convidados a seguir a cantoria e o cotejo que desfila pela plateia. “Sebastiana e Severina” é, incontestavelmente, um espetáculo para crianças de todas as idades. 

Teodorico Majestade

Espetáculo bebe da cultura popular para contestar a corrupção
Por Vinícius Vieira
Professor e jornalista

As produções cênicas não têm passado ilesas sem serem afetadas em suas temáticas pelo panorama político os quais assolam o Brasil. Não foi diferente com o espetáculo baiano “Teodorico Majestade – As últimas horas de um prefeito”, encenado sob a batuta do Teatro Popular de Ilhéus (TPI), no Teatro Luiz Mendonça, no domingo (27). A peça encerrou, entre risos e músicas, o 18° Festival Recife do Teatro Nacional.
Na obra, escrita e dirigida por Romualdo Lisboa, o prefeito Teodorico tem suas atitudes corruptas estranhadas pela população que não se dobra as tentativas de silenciamento e coerção. A narrativa avança entre ações cômicas e canções tocadas ao vivo pelo próprio elenco, além das falas proferias por um ator/músico que, do proscênio, tece comentários ácidos perante os absurdos expostos. A montagem se alimenta da cultura popular, do cordel e, por isso, leva ao palco falas rimadas entre as personagens e xilogravuras para criar a ambientação.
Se por um lado a obra continua atual por sua vontade de estranhar as relações de privilégios e omissões dos governantes – dilema há muito não superado pela população brasileira, a qual lida com estratégias de corrupção em todas as esferas e subcamadas da composição social -, por outro, as piadas feitas pelas personagens, somadas as soluções cênicas, mostram a marca do tempo de um trabalho que soma dez anos de permanência. Sem dúvida, esse longo período precisa ser celebrado e honrado, mas também não seria o momento de refletir sobre algumas escolhas dramatúrgicas e da cena?
Embora os exaustivos, mas ainda insuficientes discursos acerca da pluralidade da subjetividade humana, estudos e reflexões que defendem a legitimidade das identidades de gênero e de sexualidade, a encenação opta por oferecer ao público o riso fácil com o estereótipo da “bicha” afetada, a qual conquista a simpatia alheia somente pelo “jocoso” jeito de ser. É “engraçado” porque foge à norma. É o caso do assistente do prefeito que protege o patrão e tenta camuflar seu desvio de caráter a todo custo. Está aí uma relação de subjugação e poder às identidades dissidentes que recebem, na obra, manutenção e permanece apenas pela possibilidade de provocar o risível.
O riso, aliás, surge de outro estímulo fácil: os palavrões, que se repetem como redes de segurança para garantir a alegria da plateia. Embora o recurso demasiadamente explorado, as situações conflitantes entre as personagens caricaturadas já conseguem a aderência do público pelas suas formas de ser. As figuras apresentadas já causam uma aproximação quase que imediata no espectador, o que torna o uso recorrente do palavrão, ao nosso olhar, desnecessário.
Na cena, as personagens são desenhadas com expressões faciais e ações dilatadas, exageradas. O corpo inteiro comunica um sentimento. Essa escolha interpretativa quer expor o ridículo e o absurdo das relações humanas e faz pensar sobre a frivolidade de certas atitudes, o egoísmo, a ganância. Essa vontade da produção interferir nos jogos de poder é tão intensa que chega a fazer da montagem uma obra panfletária.
Outra questão que merece um olhar atento é o ritmo do espetáculo, que entra, em vários momentos, em uma dilatação sem justificativa. Por vezes, a demora da concretização de uma ação - como acontece no início e final do espetáculo -, além das repetições dos mesmos dilemas entre as personagens tornam alguns pontos da encenação menos atraentes.

Vale destacar aqui a atuação do ator Ely Izidro, que interpreta com muita precisão, desenvoltura corporal e carisma o prefeito Teodorico. A peça, escrita em 2006, já circulou por várias cidades brasileiras e participou da Mostra Latino Americana de Teatro em São Paulo. Além disso, o espetáculo recebeu duas indicações no Prêmio Braskem de Teatro.

O pão e pedra

O pão e a pedra: o teatro e a práxis política de uma companhia
Por Bruno Siqueira

Recife já conhece a Companhia do Latão de longas datas. Foi por conta de algumas das edições do Festival Recife do Teatro Nacional que pudemos assistir deles Ensaio para Danton, Ensaio sobre o Latão, A Comédia do Trabalho, O nome do sujeito. Nesta sua décima oitava edição, o festival trouxe, mais uma vez, o grupo paulista capitaneado por Sérgio de Carvalho, agora com o espetáculo O pão e a pedra. Vale registrar aqui que nosso contato com a companhia só se deu graças a Romildo Moreira, nos anos em que esteve à frente da organização de nosso festival. A ele somos gratos por nos dar a oportunidade de conhecer e apreciar, em nossa cidade, o trabalho de um grupo que se empenha na pesquisa estética e na politização da cena teatral.

Herdeira de uma estética brechtiana, a Companhia do Latão adota, desde seus primeiros trabalhos, a perspectiva de um teatro político, dialético, épico em sua construção, com o intento de encontrar uma cena teatral que tenha poder de intervenção na realidade concreta e cheia de contradições. Do ponto de vista político, assume o lado da esquerda de tradição marxista. Todos esses atributos estão presentes no espetáculo O pão e a pedra. Dessa vez, a pesquisa se preocupou em investigar a participação da igreja católica nas lutas políticas contra as ditaduras na América Latina, em particular no Brasil, por meio da Teologia da Libertação, corrente que surgiu na segunda metade do século XX. 

No entanto, o que foi o mote do novo trabalho da companhia findou por se mostrar parte de uma totalidade maior: as mobilizações sociais contra a exploração do capital. Em cena, a greve dos metalúrgicos no ABC paulista, em 1979. A dramaturgia, assinada por Sérgio de Carvalho, parte dos documentos históricos desse acontecimento que contou com a participação de mais de 70 mil trabalhadores sindicalizados, junto à igreja progressista e a estudantes da esquerda. Ao reconstruir esse momento histórico, a cena passa a estabelecer uma relação dialética com o tempo atual. E está aí a força política do trabalho do Latão, a meu ver.

A narrativa foca a mobilização de operários, religiosos e estudantes em busca de uma maior adesão à proposta de greve em prol de melhores condições de trabalho. Muitas das personagens passam a se convencer da relevância de uma greve como forma legítima de pressão política por parte dos trabalhadores assalariados. Como não poderia deixar de acontecer, Luís Inácio Lula da Silva, personagem histórico desse momento, está presente na peça, seja quando seu nome é mencionado pelos demais personagens fictícios, seja quando seu discurso é projetado em off, num áudio gravado à ocasião da referida greve. É na figura de Lula que as personagens depositam sua crença na mudança. O clímax da narrativa se dá quando o líder sindical, após negociação com os donos das metalúrgicas, aconselha os operários a voltarem a seus trabalhos, sem terem alcançado o que reivindicavam na greve. A decepção e a desolação marcam as expressões das personagens, que se veem traídas pelo seu líder. Daí o nome do espetáculo, inspirado numa passagem do Evangelho segundo São Mateus: “Quem dentre vós dará uma pedra a seu filho, se este lhe pedir pão.”

A recente história do governo Lula serve de contraponto dialético para a fábula criada por Sérgio de Carvalho. O momento histórico mais recente nos ajuda a compreender o passado no que ele já apresentava de potência para o desenvolvimento da história em curso. Para manter a liderança e a organização, o sindicato faz concessão aos capitalistas e convence os grevistas a recuarem. Situação semelhante se deu quando do governo Lula, que precisou fazer alianças com partidos de direita, em prol do capital, para que o partido dos trabalhadores se mantivesse na liderança. O governo Lula assumiu um discurso antineoliberal, mas não atingiu as bases do sistema capitalista nem modificou o quadro de desigualdades sociais. Da mesma forma que, na greve de 1979, muitos operários se decepcionaram e passaram a não se ver mais representados pelo líder sindical, muitos partidários do PT se viram traídos nas escolhas políticas de seu líder, o Lula, durante seus dois mandatos.

Mas a cena se torna o espaço do real nas suas múltiplas determinações. A despeito de tudo, o recuo dos grevistas naquele momento se mostrou como estratégico para o que viria depois na história, com a política do PT, num movimento mais efetivo e bem sucedido. Será que, no nosso olhar do tempo presente, Lula ainda teria a credibilidade de outrora para fazer um governo que revertesse a ordem do capital usurpador e criasse uma política com ênfase no social e na diminuição gradual das desigualdades sociais?

Toda essa reflexão me foi suscitada pelo tipo de teatro – dialético – que a Companhia do Latão nos ofereceu com seu O pão e a pedra. Por vezes ficava me questionando, enquanto assistia ao espetáculo: será que a cena construída com os procedimentos do teatro épico brechtiano, da forma como o grupo vem interpretando o legado de Brecht, teria espaço no mundo contemporâneo? Ou seja, essa cena, na sua forma estética específica, cumpriria com seu papel político de intervir no real para transformá-lo, na medida em que consegue ainda criar um espaço de discussão política com seus espectadores (lembro: os de hoje)?


A depender de mim e dos espectadores que estavam assistindo ao espetáculo ao meu lado, diria que sim. O teatro épico, político e dialético feito pelo Latão, com a qualidade de acabamento e de atuação, ainda cumpre com sua função política: emociona, suscita reflexões e pensamentos que nos acompanham para além do término do espetáculo. Foram quase três horas de espetáculo que, para mim, proporcionaram prazer e satisfação; sobretudo, por saber que nos ajudou a compreender um pouco mais de nossa realidade e por nos ter reabastecido da esperança de que podemos construir um país melhor. 

H(EU)stória


Um Glauber Rocha protegido de suas contradições

Astier Basílio (*)

Mais do que um cineasta, Glauber Rocha foi um acontecimento na cultura brasileira. Polêmico. Barroco. Genial. E, sobretudo, contraditório. Sua vida motivou a peça H(EU)stória – O tempo em transe, do  Coletivo Grão Comum, juntamente com a produtora Gota Serena, que, com este espetáculo, iniciam o que eles estão chamando de Trilogia Vermelha, uma série que terá ainda como temas Paulo Freire e Dom Hélder Câmara.
A peça integrou a programação do Festival do Teatro Nacional, do Recife. A apresentação aconteceu no teatro Barreto Júnior. Logo na entrada os atores Márcio Fecher e Júnior Aguiar,   usando o figurino com o qual se apresentarão, recepcionam o público, oferecem um tipo de chá. Quando chegamos ao teatro, nos degraus que dão acesso ao palco,  foram dispostas velas por sobre folhas. É, praticamente, a única cenografia da montagem. Evoca os despachos de encruzilhada, liturgia e oferenda dos cultos afros.
Mais à frente, em alguns dos áudios nos quais é possível escutar a voz do próprio Glauber, ouviremos o cineasta dizer que "nossa cultura é a Macumba e não a ópera. Somos um país sentimental, uma nação sem gravata". A afirmação é quase como uma senha, uma espécie de chave na qual poderíamos tentar ler a proposta. Em comum com o rito há, evidente, a fé.  Mas a crença que se vê no palco é ideológica e é essa crença que vai costurando o discurso e recortando as muitas facetas de Glauber Rocha, tanto por meio de citações de cartas suas, como pontuando essas cartas com informações didáticas sobre a vida do cineasta e a história do país.
Há um fervor que se materializa num tom interpretativo que busca a visceralidade e se imprime, em vários momentos, por meio da uma atuação gritada, o que, se por um lado, traz força e garra, ao repetir, esvazia-se na diluição do efeito. Como o palco está nu, o foco recai, com muita intensidade, sobre a interpretação dos atores que, embora ensaiem jogos corporais, na maior parte do tempo concentram numa espécie de pregação.
Em uma das cartas, a que é endereçada ao escritor e pernambucano Jomard Muniz de Britto vê-se Glauber Rocha fazendo pontuações críticas tanto à esquerda como à direita brasileiras. É o único momento em que vemos isso. O Glauber que emerge do espetáculo, a costura que é feita, resulta em alguém, portanto, incompleto, protegido de suas próprias contradições. Vou dar um exemplo. Em 1974, quando o golpe militar completava 10 anos, a Revista Visão, à época editada por Vladimir Herzog fez um especial sobre a data. O responsável por escrever o balanço cultural foi Zuenir Ventura. Ao ser entrevistado Glauber Rocha escreveu uma de suas declarações mais polêmicas: “Acho que Geisel tem tudo na mão para fazer do Brasil um país forte, justo e livre. Estou certo, inclusive, de que os militares são os legítimos representantes do povo”. Disse ainda que o general Golbery do Couto e Silva, criador do serviço secreto da ditadura militar, o SNI, era “gênio da raça”.
Não há qualquer menção a este fato no espetáculo. A amistosa relação de Glauber com os militares, omitida no espetáculo, não se restringiu apenas a este episódio. Há vários outros. Fixo-me apenas no quiproquó armado por Glauber ao perder, com A Idade da Terra, o Leão de Ouro, no Festival de Veneza. O episódio é mencionado, na peça. Mas apenas parte dele. Mostra Glauber chamando de fascista o vencedor do prêmio, o francês Louis Malle. O bate-boca entre os dois foi registrado pela imprensa da época.  Glauber afirmou que o colega havia ganho o prêmio porque “porque as cartas estavam marcadas”. Disse mais. “Você venceu porque o seu filme teve a produção da Gaumont, uma multinacional imperialista". Ao que Malle, irônico, perguntou: "E o seu filme foi produzido por quem?". Glauber respondeu: "Pela Embrafilme, uma empresa estatal de meu país". Sorrindo, e afiando a ironia, o francês devolveu: "E o Brasil não tem um regime fascista? ou você é daqueles que acha que Figueiredo é democrata?".
Ao ouvir aquilo, Glauber perdeu o controle. "Fascista são vocês, que manipulam as multinacionais do cinema, que impõem toda a sorte de mediocridade ao mercado do Terceiro Mundo. Você, Malle, é um diretorzinho de segunda categoria. Você sabe que não pode concorrer comigo. Você é medíocre. E fascista".
Ainda em Veneza, Glauber comentou com um jornalista romano que pretendia candidatar-se nas eleições de 1982, pelo PDS, a senador ou deputado federal. Lembremos que, em 1980, quando Glauber deu essa declaração, o Brasil havia mudado o sistema bipartidário, no qual apenas existiam duas legendas, o MDB, de oposição, e a ARENA, de sustentação ao regime militar, do qual o PDS foi herdeiro.
Em fevereiro de 1980, Glauber deu entrevistas dizendo que iria se filiar ao partido egresso da ARENA. Ao justificar sua preferência pelo PDS, disse: “Minha posição é coerente com apoio que dei ao Geisel, à abertura, ao Golbery, e ao Figueiredo, que está conseguindo, por exemplo, fazer do Brasil um país mais livre atualmente da América Latina, onde não há mais presos políticos”. Glauber disse que se filiaria à seção baiana do partido. “Ali existe uma base séria e responsável e o governador Antonio Carlos Magalhães é meu amigo”.
Não é à toa que praticamente todos os amigos de Glauber Rocha haviam rompido com ele quando o cineasta morreu. Longe de ser um adesista de direita, o mentor do cinema novo era alguém com suas contradições e complexidades, vale lembrar que em 1980, entre os seus projetos anunciados, além da candidatura pelo PDS, estavam a montagem da peça “Jango, uma tragedya”, cujo texto foi entregue ao jornalista Luiz Carlos Maciel, aquele da turma de O Pasquim; em 17 de julho daquele ano, a Ilustrada, da Folha de São Paulo, dava notícia de que Glauber viajara à Europa, com o objetivo de passar um ano lá, filmando a vida de Karl Marx, a partir de um roteiro elaborado pelo cineasta italiano Roberto Rosselini, as filmagens começariam após a participação do cineasta no festival de Veneza. Não deu tempo.
Ao se fugir de temas complexos, como o declarado apoio aos militares, temos um Glauber Rocha, repito, podado de uma de suas principais características, a contradição, justamente o que fazia dele um ser demasiado humano.



(*) Crítico de teatro do jornal Correio da Paraíba, poeta, ficcionista e dramaturgo, prêmio Funarte de Dramaturgia, 2014, com a peça "Maquinista".

NÓS

Crítica espetáculo ‘Nós’, do Grupo Galpão

Teatro é discotear onde dói

Além das arquibancadas, colocadas paralela uma a outra, o Teatro Luiz Mendonça, de formatação à italiana, acolheu a plateia nas demais cadeiras, para encenação do espetáculo “Nós”, produção do Grupo Galpão, que integrou a grade da programação do 18o Festival Recife do Teatro Nacional.


Acom direção é de Márcio Abreu que divide a dramaturgia com Eduardo Moreira, fundador do grupo, que está em cena com seus companheiros de sempre Antonio Edson, Chico Pelúcio, Júlio Maciel, Lydia Del Picchia, Paulo André e, finalmente, a grande protagonista desta montagem, Teuda Bara.


O texto foi composto a partir de colaborações e exercícios nos quais todo o Galpão participou, é bom lembrar. A ação se passa em uma cozinha na qual um grupo de pessoas prepara uma sopa. O texto é entrecortado pelas vozes coletivas que se atropelam. É, para cada um dos personagens, difícil prender a atenção geral. As pequenas histórias propostas são esgarçadas. Todos falam, mas é quase raro alguém estar disposto a ouvir. Neste sentido, as falas vão se intensificando em ritmo até o ponto em que a combustão exploda, literalmente, os limites do diálogo, na cena.


Há, eu diria, quase como um flerte com a impossibilidade de comunicação de Beckett, mas o que conflito aqui é de outra ordem. Pergunta-se: de que maneira é possível conjugar a difícil primeira pessoa do plural, o “nós”, sem anular o indivíduo, sem esmagá-lo? Há uma cena em que esta imagem se materializada. A personagem de Teuda é convidada a sair por decisão geral, mas se recusa, até que é expulsa. Empurrada. Jogada e posta dentro de um alçapão.


Há, porém, um outro “nós”, perpassando a encenação, eletrocutando as pontas dos fios que se emaranham. Suscita-se outra pergunta: em que medida é possível fechar todas as pontas de um projeto realizado em conjunto? Há, também, uma cena, magistral em que quase toda a companhia se amarra e se imobiliza.


Em seus 34 anos, o Grupo Galpão se dá um cruel exercício de enfrentamento de seus próprios fantasmas. Há, curiosamente, muita repetição. O recurso é usado de modo consciente como uma poderosa ferramenta de linguagem. Logo o Galpão que, com sua estética colorida, é, às vezes com razão, acusado de fazer mais do mesmo.


O recurso da repetição, a meu ver, traz algo de gostosamente irônico. Tanto nas partituras de cenas, junto com falas, que se desdobram, como marcações, em tons e intensidades distintas, como nas situações do cozimento de uma sopa que, o tempo todo, por suas interrupções, dá a entender que não vai ficar pronta. Mas fica. E o resultado deste trabalho, que periclitou, foi oferecido e compartilhado com a plateia. A caipirinha e a sopa. O pão e o álcool. A reflexão e o divertimento. Não é isso que o teatro tem de melhor para nos oferecer?


Quantas vezes não se ouviu também que o grupo Galpão envelheceu. Sim. E essa questão não é contornada. Ao contrário. É eviscerada a não mais poder numa comovente cena de entrega em que, os veteranos do Galpão, Teuda e Eduardo, estão juntos. E nus. Há que se ressaltar, dentre as muitas virtudes da direção de Márcio Abreu, uma em particular. A de conseguir tirar o melhor de cada ator. Todo o elenco obteve uma qualidade coletiva raramente vista. Além do mais, cada ator e atriz teve, particularmente, o seu grande momento em cena.
Conhecido pela excelência musical e pelo sua ligação com a cultura popular, ao por em cena os atores cantando “Lama”, de Paulo Marques e Aylce Chaves, sucesso na voz de Núbia Lafayete, o Galpão, ao chafurdar com classe no brega, se conectou com os subterrâneos do Brasil profundo.“Comendo a mesma comida/ bebendo a mesma bebida/ respirando o mesmo ar”.  Os versos famosos versos  cantados à capela por Teuda e depois orquestrados em acompanhamento musical do grupo foram a pedra de toque para a plataforma estética,  que transfigurou a fábula particular, de um grupo que se desentende, alçando-se numa visada sobre as questões atuais, como, de modo explícito, a explosão da barragem da Samarco. Mais não só esta explosão de dejetos químicos. O que jorra em cena é a lama diária nos afoga e nos enoja a todos.   
O cenário de Marcelo Alvarenga, uma plataforma escura, é alterado para um espelho após a expulsão de Teuda. É como se, de modo impiedoso, as perguntas voltassem para o próprio grupo. Há um momento em que Eduardo Moreira pergunta: “para onde ir?”. Impossível não  lembrar, com emoção, que esta é a mesma pergunta feita na peça “Caravana da Ilusão”, do mineiro Alcione Araújo. Porém, aqui não há um pai a se lamentar a ida. Nem a personagem de Teuda, que o tempo todo pergunta sobre o que estão os outros falando,  assume essa posição matriarcal. Na poltrona, cercada de paparicos, numa perversa e divertida reversão, Teuda é readmitida. Para onde ir?  
Ao olhar para si, sem peias e nem bridas, o Galpão construiu uma obra de arte monumental que não ficou no exercício de narcisismo. Alcançou a dimensão da metáfora.  Pensou não só o lugar da companhia, o que fazer daqui 5, 10 anos,  mas refletiu sobre o teatro como um todo, das razões de continuar prosseguindo.
Mas eu retomo a pergunta. Para onde ir? Eu fico com a resposta do Galpão. Vamos à festa. É esse o convite que o grupo faz. E ao chamar a plateia para encerrar o espetáculo com eles, em cima do palco, como uma homenagem ao seus trabalhos de teatro de rua,  era como se o Galpão nos dissesse que teatro é discotecar onde dói; é fazer folia com nossas próprias feridas; é sapatear, sem piedade, sobre o que somos.


NÓS




Viva o Teatro Vivo!




Paulo Vieira





Tenho dito mau de espetáculos que constróem a cena com o livro do Hans-Thies Lehmann debaixo do braço. Em função disto, em recente debate durante o Seminário Internacional de Crítica, a minha colega Ivana Moura me perguntou se eu sou um cara conservador. Depois ela veio se desculpar pela pergunta, mas, disse, foi para dar voz aos burburinhos da plateia enquanto eu falava. Frequentemente tenho respondido a esta pergunta, não é essa a primeira vez, Ivana, com a afirmação categórica: sou. Se ser conservador é não gostar de espetáculos que criam com a plateia um jogo de adivinhação, e cuja estrutura interna, seja da parte da dramaturgia, seja da parte da encenação, constrói cenas desconectadas uma a outra, espetáculos que nada comunicam, ou espetáculos que se comunicam de maneira radical no sentido de esfregar na cara da plateia suas certezas absolutas sobre o tudo e sobre o nada, se ser conservador é sair de um espetáculo desta natureza sem um mínimo sentimento interno de que o espetáculo tocou e remexeu em minha sensibilidade, sinceramente, eu o sou. Tenho dito que teatro não é receita. Não há fórmula para se construir um bom espetáculo. Há caminhos possíveis e há, sobretudo, estruturas narrativas que podem ser mais ou menos abertas, mas acima de tudo, o teatro deve tocar até na sensibilidade dos morcegos pendurados na caixa de cena. Teatro que não tira os meus pés do chão, que não me faz dar cambalhotas de surpresa e alegria em minha alma, teatro que necessita de debate para explicar ao público o que o distinto público viu, teatro de tese, acadêmico no pior sentido, mas que se apresenta moderninho, com todos os elementos  narrativos desestruturados, ou carregado de um sentido ideológico cuja certeza está na frente, cuja história está na mão, teatro desta natureza não me interessa, não toca a minha sensibilidade, não fala para muita gente, há muito mais gente do que eu sozinho que sente e pensa assim, mas, por medo de ser chamado de conservador (isto é quase uma maldição), cala. Ou consente. Na década de setenta, em plena ditadura, quando o teatro era ferozmente perseguido, o teatro passou por uma experiência semelhante, de realizar espetáculos desesperados, quando não agressivos. Naquele instante sobressaíram vozes como as de Paulo Pontes e Vianinha chamando à razão de volta: fazer espetáculos que tragam o público para o teatro, em detrimento do que as então ditas vanguardas faziam: espetáculos desconexos com a razão e a sensibilidade do público, que então, na linguagem do momento, Paulo Pontes chamava a atenção de que era preciso falar à realidade do público. De certo modo, o que está havendo hoje repete o passado. E a bola da vez é o pós-dramático, cujos espetáculos criam uma linguagem cifrada que se comunica apenas consigo e mais ninguém. A esquizofrenia baixou no palco brasileiro. É preciso chamar a razão de volta. Paulo Pontes e Vianinha também foram acusados de conservadores (eram os caras da turma da palavra contra os caras da vanguarda). Muitas vezes eles se defendiam também se dizendo de vanguarda (afinal ninguém quer ficar de fora do barco das novidades). Mas a verdade o tempo decantou. E a obra dos caras da palavra permaneceu como um legado de uma geração que enfrentou duramente a ditadura, lutando para manter o autor brasileiro em cartaz, e o teatro com público desejando teatro, lotando as casas de espetáculos. Acontece que hoje o público desapareceu do teatro. Cadê o público? A culpa é de quem? da Rede Globo? do Cinema? das mídias digitais? Ou do próprio teatro que não se comunica com o mundo, ou o faz de modo que é preciso ter o livro do Lehmann aberto para tentar entender as cenas que são propostas pelas novas vanguardas? Dos espetáculos que eu vi no 18º Festival Recife do Teatro Nacional, inclusive o mais belo de todos, o do Galpão, o que vi foram plateias vazias, e os poucos que lá estavam éramos todos gente de teatro. Então, é preciso reconhecer que o teatro vive uma entropia autodestrutiva. Cada vez mais fazemos teatro para poucos. Cada vez mais fazemos teatro para nós mesmos. E sem público o teatro perde a sua razão de ser. Meus amigos, meus inimigos, como escreveu Bandeira, o velho bardo vive agora entre mil perigos. O teatro está morrendo. Viva o Teatro!

            Viva o teatro vivo do Galpão, por exemplo, no espetáculo Nós, que comoveu a plateia até as lágrimas. Aí vem a pergunta: bom teatro é o que faz o público chorar? Bom teatro é, do meu ponto de vista, o que pega o público e o trás para dentro da cena, metaforicamente, e o faz ser cúmplice da ação que o espetáculo realiza. O espetáculo do Galpão contém todos os elementos da modernidade e, inclusive, da pós-modernidade. Mas não é isso o que nele encanta, porque, antes de tudo, isto é rótulo, é fórmula, é forma não é fundo, é corpo não é alma. O grande entrave do pós-dramático é o texto. Há que negar necessariamente a tradição, e esta tradição, diga-se, é erroneamente atribuída a Aristóteles, aos gregos, a história. Do meu ponto de vista não há tradição alguma. Há linguagem. E há a linguagem do teatro que foi, por sua vez, estudada por Aristóteles em sua poética. Ora, se o texto é um dos elementos da tradição, então o texto precisa ser superado em suas estruturas para ser contemporâneo, para ser pós-dramático. Acontece que o nó do teatro contemporâneo é, antes da cena, o texto.  Não se retira um elemento da linguagem sem provocar no mínimo um estranhamento (epa!, isso parece Brecht!). E no caso do texto, os elementos da estrutura narrativa são a ação e o conflito. Pois bem, o pós-dramático para ser pós-dramático precisa eliminar justamente esses elementos. O problema é quando não se acrescenta outro elemento em substituição aos que foram eliminados. No caso do texto Nós os elementos de ação e conflito foram retirados. Em seu lugar foram acrescentados dois outros: no texto, a repetição, que cria uma empatia com a plateia, até mesmo porque a repetição se dá no texto e não na cena. A cada vez que o tema central é repetido a cena é representada de maneira diferente. O outro elemento acrescentado e que se conjuga na estrutura da linguagem deste texto/espetáculo é o ritmo. A cena é repetida no texto, representada diferente, e com um ritmo que vai se tornando cada vez mais intenso até atingir o vórtice do movimento, até a total destruição daquilo que está posto como imagem: uma mesa na qual se prepara uma sopa que será servida à plateia. A cena vai da preparação de uma sopa a uma orgia desconcertante, construindo a desconstrução do discurso, conduzido e acrescentado pelo ritmo que o Galpão domina com mestria. E tudo isto com a conivência da plateia, que se delicia quando percebe que tudo volta no texto, mas tudo avança na cena. O espetáculo com a direção de Márcio de Abreu é um falso simples. Marcio Abreu e Eduardo Moreira construíram uma dramaturgia encantadora, minimalista, um bolero à maneira de Ravel, musical e repetitivo, surpreendente e arrebatadora. Uma dramaturgia que fala ao nosso tempo, que é política sem ser panfletária, que é contestatória sem ser propagandística, que é realística sem deixar de ser poética. Que é teatro. Novo e antigo. Eterno e moderno. Dramático e pós-dramático. E cheia de conflito. De dúvidas, de incertezas, de crueldade, mas de um amor e de um humanismo comovente. No fim, a festa, a sopa, o grande banquete. Teuda Bara e Eduardo Moreira fazem uma cena linda, desnuda de corpo e alma, plena de verdade e de comoção. É lindo ver o Eduardo e a Teuda nús, os corpos com as marcas do tempo, a verdade nua e crua, bela em seu despojamento. Teuda Bara é daquelas atrizes que em mim me dão vontade de dizer e digo agora: muito obrigado por você, pela sua arte, pelo seu talento, pela sua generosidade. Nós é a celebração da vida e do teatro, do amor e da esperança. No final, a festa rolando, eu fiquei embaixo na plateia, aplaudindo sozinho a Teuda que acenava para que eu subisse no palco e fosse abraçá-la. Antes, Ivana, docemente pegou na minha mão e me convidou para subir com ela e dançar na festa em que se transforma o fim do espetáculo.Desculpa Teuda, desculpa Ivana, mas o palco eu não ocupo nem quando eu dirijo o espetáculo. Tenho por ele um respeito quase religioso. E creio que na função do espetáculo somente os santos (olha Grotovski aí, gente) devem ocupá-lo. Mas, enfim, culpa minha, fiquei com um beijo guardado na alma e uma dança adiada sim.




H(EU)stória


salada mix, muda




Paulo Vieira



Eu vinha esta manhã andando pela calçada de Boa Viagem quando um homem, um senhor, com olhar messiânico e um maço de papeiszinhos nas mãos se dirigiu a mim e me estendendo um deles me perguntou se eu receberia a palavra do Senhor. Eu tenho por hábito receber todos os papéis que me dão nas ruas, nos sinais. Sem dizer palavra, estendi a mão e recebi a tal palavra do Senhor. Fiquei pensando que o tempo que vivemos é de um messianismo atroz. Aquele senhor é um militante da palavra do Senhor. E eu que não sou militante de nada,  eu que tenho o mau hábito de desconfiar de todas as verdades, eu que sofro do mal de Pilatos, fico me perguntando sobre as verdades desse mundo, e me espanto quando as vejo proclamadas em nossas caras com tamanhas certezas. Fiquei pensando estas coisas não apenas pelo papelzinho com a palavra do Senhor, mas igualmente pelo espetáculo que ontem eu vi no Teatro Barreto Júnior, dentro da programação do Seminário Internacional de Crítica Teatral, em Recife. Um teatro da militância, um teatro da verdade, a palavra do senhor Marx batendo na cara da plateia. Gente, digo para mim mesmo, não conheço nada mais chato do que teatro de militância. Não conheço nada mais desalentador do que ator gritando em transe as verdades eternas das lutas de classe. E esse foi justamente o caso do espetáculo H(EU)stória - o tempo em transe, que apresenta a trajetória de Glauber Rocha na vida brasileira. O problema da militância é que ela não é racional, embora queira ser a própria expressão da racionalidade. O problema daquilo que se pretende teatro dialético é porque não contém dialética alguma, porque se contivesse as contradições que emergem no discurso seriam postas em questão, mas o teatro militante não está preocupado com as suas contradições, senão com as contradições do… sei lá… vamos chamar de “sistema”. Por exemplo: os discursos políticos de Glauber Rocha contra o sistema são gritados, literalmente, pelos atores, e pela quantidade de perdigotos expelidos, eu diria mesmo que são cuspidos na cara da plateia, que, por sorte, se encontra em salvaguarda deste desconforto, pela distância que se encontra dos atores. Mas não se ouve uma única palavra de elogio ao sistema por parte do Glauber Rocha. E ele o fez aos montes: inclusive rasgando-se em louvor a ditadura militar. E isso pela TV em programa semanal. E isso o espetáculo não leva em conta, talvez porque não contenha, aos olhos dos atores, um gérmen sequer de verdade, porque a verdade não é o que houve, mas aquilo em que se quer acreditar. Ou aquilo que interessa à propaganda ideológica.

            Nunca houve uma pergunta tão sincera e tão angustiante quanto a de Pilatos para Jesus que, aliás, diante da sua própria loucura ideológica, confrontado em seu momento crucial, talvez até despertando do seu torpor messiânico, no mutismo em que se encerrou diante do poderoso romano, talvez tivesse feito a si mesmo esta mesma pergunta, e por isso tenha se calado. Então, eu que não creio em Jesus nem em Marx, eu que não creio nos deuses nem nos homens, eu que não creio na militância nem na pureza, eu que não creio em partidos nem em igrejas, diante de espetáculos dessa natureza, eu me calo. Pronto.

            Mas não posso deixar de dizer que antes mesmo do espetáculo os atores, recebendo o público do lado de fora do teatro, são muito simpáticos, inclusive oferendo-nos uma bebida gostosinha, quentinha, docinha, deliciosa. Quando entramos na sala de espetáculos, deparamo-nos com uns arranjos de velas, folhas e incensos que nos remetem para algum tipo de ritual místico, religioso, sei lá. Ora, isso por si já nos dá a leitura do que está por vir no espetáculo, que acaba tomando um caminho inesperado até então, e nele se mantém. O que me parece é que falta alguma definição no sentido da encenação. No começo me parecia que espetáculo que tenha algum caráter místico necessite de uma sonoridade própria, com instrumentos de percussão sendo executados ao vivo, ao invés de se valer da solução mais fácil que é a sonoridade de uma reprodução mecânica. Ao depois, aquilo que parecia não era, e os atores, na sequência, passaram a gritar desesperadamente as verdades das suas verdades, e aquilo que deveria ser um espetáculo de teatro passou a ser um espetáculo de messianismo ideológico, e com isso os elementos do teatro, atores e tudo o mais, se perderam na sua função. E havia um tom de raiva na interpretação dos atores, um tom intimidador, laudatório, bem diferente do que foi na entrada do teatro, quando tudo parecia paz, quando o encontro parecia o desejo, quando os atores não haviam ainda revelado o que estava escondido: a certeza na frente e a história na mão.

            Não me incomoda o teatro, qualquer que seja, se há teatro. Todos os discursos são possíveis e desejáveis no teatro. Mas para isso, do meu ponto de vista, é necessário atentar para o teatro enquanto linguagem, começando pelos atores que devem buscar a expressão em si mesmos. Há um belo momento no espetáculo, quando um ator rodopia com um alguidar repleto de incenso criando uma imagem poética linda, desenhando o espaço com a fumaça, e nos dando a ilusão de que aquele seria o tom do espetáculo. Também não foi. Então, apenas nos restou comer uma salada em silêncio. E ir para a cama, calado.