Um Glauber Rocha protegido de suas contradições
Astier Basílio (*)
Mais do que um cineasta, Glauber Rocha foi um acontecimento na cultura brasileira. Polêmico. Barroco. Genial. E, sobretudo, contraditório. Sua vida motivou a peça H(EU)stória – O tempo em transe, do Coletivo Grão Comum, juntamente com a produtora Gota Serena, que, com este espetáculo, iniciam o que eles estão chamando de Trilogia Vermelha, uma série que terá ainda como temas Paulo Freire e Dom Hélder Câmara.
A peça integrou a programação do Festival do Teatro Nacional, do Recife. A apresentação aconteceu no teatro Barreto Júnior. Logo na entrada os atores Márcio Fecher e Júnior Aguiar, usando o figurino com o qual se apresentarão, recepcionam o público, oferecem um tipo de chá. Quando chegamos ao teatro, nos degraus que dão acesso ao palco, foram dispostas velas por sobre folhas. É, praticamente, a única cenografia da montagem. Evoca os despachos de encruzilhada, liturgia e oferenda dos cultos afros.
Mais à frente, em alguns dos áudios nos quais é possível escutar a voz do próprio Glauber, ouviremos o cineasta dizer que "nossa cultura é a Macumba e não a ópera. Somos um país sentimental, uma nação sem gravata". A afirmação é quase como uma senha, uma espécie de chave na qual poderíamos tentar ler a proposta. Em comum com o rito há, evidente, a fé. Mas a crença que se vê no palco é ideológica e é essa crença que vai costurando o discurso e recortando as muitas facetas de Glauber Rocha, tanto por meio de citações de cartas suas, como pontuando essas cartas com informações didáticas sobre a vida do cineasta e a história do país.
Há um fervor que se materializa num tom interpretativo que busca a visceralidade e se imprime, em vários momentos, por meio da uma atuação gritada, o que, se por um lado, traz força e garra, ao repetir, esvazia-se na diluição do efeito. Como o palco está nu, o foco recai, com muita intensidade, sobre a interpretação dos atores que, embora ensaiem jogos corporais, na maior parte do tempo concentram numa espécie de pregação.
Em uma das cartas, a que é endereçada ao escritor e pernambucano Jomard Muniz de Britto vê-se Glauber Rocha fazendo pontuações críticas tanto à esquerda como à direita brasileiras. É o único momento em que vemos isso. O Glauber que emerge do espetáculo, a costura que é feita, resulta em alguém, portanto, incompleto, protegido de suas próprias contradições. Vou dar um exemplo. Em 1974, quando o golpe militar completava 10 anos, a Revista Visão, à época editada por Vladimir Herzog fez um especial sobre a data. O responsável por escrever o balanço cultural foi Zuenir Ventura. Ao ser entrevistado Glauber Rocha escreveu uma de suas declarações mais polêmicas: “Acho que Geisel tem tudo na mão para fazer do Brasil um país forte, justo e livre. Estou certo, inclusive, de que os militares são os legítimos representantes do povo”. Disse ainda que o general Golbery do Couto e Silva, criador do serviço secreto da ditadura militar, o SNI, era “gênio da raça”.
Não há qualquer menção a este fato no espetáculo. A amistosa relação de Glauber com os militares, omitida no espetáculo, não se restringiu apenas a este episódio. Há vários outros. Fixo-me apenas no quiproquó armado por Glauber ao perder, com A Idade da Terra, o Leão de Ouro, no Festival de Veneza. O episódio é mencionado, na peça. Mas apenas parte dele. Mostra Glauber chamando de fascista o vencedor do prêmio, o francês Louis Malle. O bate-boca entre os dois foi registrado pela imprensa da época. Glauber afirmou que o colega havia ganho o prêmio porque “porque as cartas estavam marcadas”. Disse mais. “Você venceu porque o seu filme teve a produção da Gaumont, uma multinacional imperialista". Ao que Malle, irônico, perguntou: "E o seu filme foi produzido por quem?". Glauber respondeu: "Pela Embrafilme, uma empresa estatal de meu país". Sorrindo, e afiando a ironia, o francês devolveu: "E o Brasil não tem um regime fascista? ou você é daqueles que acha que Figueiredo é democrata?".
Ao ouvir aquilo, Glauber perdeu o controle. "Fascista são vocês, que manipulam as multinacionais do cinema, que impõem toda a sorte de mediocridade ao mercado do Terceiro Mundo. Você, Malle, é um diretorzinho de segunda categoria. Você sabe que não pode concorrer comigo. Você é medíocre. E fascista".
Ainda em Veneza, Glauber comentou com um jornalista romano que pretendia candidatar-se nas eleições de 1982, pelo PDS, a senador ou deputado federal. Lembremos que, em 1980, quando Glauber deu essa declaração, o Brasil havia mudado o sistema bipartidário, no qual apenas existiam duas legendas, o MDB, de oposição, e a ARENA, de sustentação ao regime militar, do qual o PDS foi herdeiro.
Em fevereiro de 1980, Glauber deu entrevistas dizendo que iria se filiar ao partido egresso da ARENA. Ao justificar sua preferência pelo PDS, disse: “Minha posição é coerente com apoio que dei ao Geisel, à abertura, ao Golbery, e ao Figueiredo, que está conseguindo, por exemplo, fazer do Brasil um país mais livre atualmente da América Latina, onde não há mais presos políticos”. Glauber disse que se filiaria à seção baiana do partido. “Ali existe uma base séria e responsável e o governador Antonio Carlos Magalhães é meu amigo”.
Não é à toa que praticamente todos os amigos de Glauber Rocha haviam rompido com ele quando o cineasta morreu. Longe de ser um adesista de direita, o mentor do cinema novo era alguém com suas contradições e complexidades, vale lembrar que em 1980, entre os seus projetos anunciados, além da candidatura pelo PDS, estavam a montagem da peça “Jango, uma tragedya”, cujo texto foi entregue ao jornalista Luiz Carlos Maciel, aquele da turma de O Pasquim; em 17 de julho daquele ano, a Ilustrada, da Folha de São Paulo, dava notícia de que Glauber viajara à Europa, com o objetivo de passar um ano lá, filmando a vida de Karl Marx, a partir de um roteiro elaborado pelo cineasta italiano Roberto Rosselini, as filmagens começariam após a participação do cineasta no festival de Veneza. Não deu tempo.
Ao se fugir de temas complexos, como o declarado apoio aos militares, temos um Glauber Rocha, repito, podado de uma de suas principais características, a contradição, justamente o que fazia dele um ser demasiado humano.
(*) Crítico de teatro do jornal Correio da Paraíba, poeta, ficcionista e dramaturgo, prêmio Funarte de Dramaturgia, 2014, com a peça "Maquinista".
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