O pão e a pedra: o teatro e a
práxis política de uma companhia
Por Bruno Siqueira
Recife
já conhece a Companhia do Latão de longas datas. Foi por conta de algumas das
edições do Festival Recife do Teatro Nacional que pudemos assistir deles Ensaio para Danton, Ensaio sobre o Latão, A
Comédia do Trabalho, O nome do
sujeito. Nesta sua décima oitava edição, o festival trouxe, mais uma vez, o
grupo paulista capitaneado por Sérgio de Carvalho, agora com o espetáculo O pão e a pedra. Vale registrar aqui que
nosso contato com a companhia só se deu graças a Romildo Moreira, nos anos em
que esteve à frente da organização de nosso festival. A ele somos gratos por
nos dar a oportunidade de conhecer e apreciar, em nossa cidade, o trabalho de
um grupo que se empenha na pesquisa estética e na politização da cena teatral.
Herdeira
de uma estética brechtiana, a Companhia do Latão adota, desde seus primeiros
trabalhos, a perspectiva de um teatro político, dialético, épico em sua
construção, com o intento de encontrar uma cena teatral que tenha poder de
intervenção na realidade concreta e cheia de contradições. Do ponto de vista
político, assume o lado da esquerda de tradição marxista. Todos esses atributos
estão presentes no espetáculo O pão e a
pedra. Dessa vez, a pesquisa se preocupou em investigar a participação da
igreja católica nas lutas políticas contra as ditaduras na América Latina, em
particular no Brasil, por meio da Teologia da Libertação, corrente que surgiu
na segunda metade do século XX.
No
entanto, o que foi o mote do novo trabalho da companhia findou por se mostrar
parte de uma totalidade maior: as mobilizações sociais contra a exploração do
capital. Em cena, a greve dos metalúrgicos no ABC paulista, em 1979. A
dramaturgia, assinada por Sérgio de Carvalho, parte dos documentos históricos
desse acontecimento que contou com a participação de mais de 70 mil
trabalhadores sindicalizados, junto à igreja progressista e a estudantes da
esquerda. Ao reconstruir esse momento histórico, a cena passa a estabelecer uma
relação dialética com o tempo atual. E está aí a força política do trabalho do
Latão, a meu ver.
A
narrativa foca a mobilização de operários, religiosos e estudantes em busca de
uma maior adesão à proposta de greve em prol de melhores condições de trabalho.
Muitas das personagens passam a se convencer da relevância de uma greve como
forma legítima de pressão política por parte dos trabalhadores assalariados.
Como não poderia deixar de acontecer, Luís Inácio Lula da Silva, personagem
histórico desse momento, está presente na peça, seja quando seu nome é
mencionado pelos demais personagens fictícios, seja quando seu discurso é
projetado em off, num áudio gravado à ocasião da referida greve. É na figura de
Lula que as personagens depositam sua crença na mudança. O clímax da narrativa
se dá quando o líder sindical, após negociação com os donos das metalúrgicas,
aconselha os operários a voltarem a seus trabalhos, sem terem alcançado o que
reivindicavam na greve. A decepção e a desolação marcam as expressões das
personagens, que se veem traídas pelo seu líder. Daí o nome do espetáculo,
inspirado numa passagem do Evangelho segundo São Mateus: “Quem dentre vós dará
uma pedra a seu filho, se este lhe pedir pão.”
A
recente história do governo Lula serve de contraponto dialético para a fábula
criada por Sérgio de Carvalho. O momento histórico mais recente nos ajuda a
compreender o passado no que ele já apresentava de potência para o
desenvolvimento da história em curso. Para manter a liderança e a organização,
o sindicato faz concessão aos capitalistas e convence os grevistas a recuarem.
Situação semelhante se deu quando do governo Lula, que precisou fazer alianças
com partidos de direita, em prol do capital, para que o partido dos
trabalhadores se mantivesse na liderança. O governo Lula assumiu um discurso
antineoliberal, mas não atingiu as bases do sistema capitalista nem modificou o
quadro de desigualdades sociais. Da mesma forma que, na greve de 1979, muitos
operários se decepcionaram e passaram a não se ver mais representados pelo
líder sindical, muitos partidários do PT se viram traídos nas escolhas
políticas de seu líder, o Lula, durante seus dois mandatos.
Mas
a cena se torna o espaço do real nas suas múltiplas determinações. A despeito
de tudo, o recuo dos grevistas naquele momento se mostrou como estratégico para
o que viria depois na história, com a política do PT, num movimento mais
efetivo e bem sucedido. Será que, no nosso olhar do tempo presente, Lula ainda
teria a credibilidade de outrora para fazer um governo que revertesse a ordem
do capital usurpador e criasse uma política com ênfase no social e na
diminuição gradual das desigualdades sociais?
Toda
essa reflexão me foi suscitada pelo tipo de teatro – dialético – que a
Companhia do Latão nos ofereceu com seu O
pão e a pedra. Por vezes ficava me questionando, enquanto assistia ao
espetáculo: será que a cena construída com os procedimentos do teatro épico
brechtiano, da forma como o grupo vem interpretando o legado de Brecht, teria
espaço no mundo contemporâneo? Ou seja, essa cena, na sua forma estética
específica, cumpriria com seu papel político de intervir no real para
transformá-lo, na medida em que consegue ainda criar um espaço de discussão
política com seus espectadores (lembro: os de hoje)?
A
depender de mim e dos espectadores que estavam assistindo ao espetáculo ao meu
lado, diria que sim. O teatro épico, político e dialético feito pelo Latão, com
a qualidade de acabamento e de atuação, ainda cumpre com sua função política:
emociona, suscita reflexões e pensamentos que nos acompanham para além do
término do espetáculo. Foram quase três horas de espetáculo que, para mim,
proporcionaram prazer e satisfação; sobretudo, por saber que nos ajudou a
compreender um pouco mais de nossa realidade e por nos ter reabastecido da
esperança de que podemos construir um país melhor.
Nenhum comentário:
Postar um comentário