Viva o Teatro Vivo!
Paulo Vieira
Tenho dito mau de espetáculos que constróem a cena com o livro do
Hans-Thies Lehmann debaixo do braço. Em função disto, em recente debate durante
o Seminário Internacional de Crítica, a minha colega Ivana Moura me perguntou
se eu sou um cara conservador. Depois ela veio se desculpar pela pergunta, mas,
disse, foi para dar voz aos burburinhos da plateia enquanto eu falava.
Frequentemente tenho respondido a esta pergunta, não é essa a primeira vez,
Ivana, com a afirmação categórica: sou. Se ser conservador é não gostar de
espetáculos que criam com a plateia um jogo de adivinhação, e cuja estrutura
interna, seja da parte da dramaturgia, seja da parte da encenação, constrói
cenas desconectadas uma a outra, espetáculos que nada comunicam, ou espetáculos
que se comunicam de maneira radical no sentido de esfregar na cara da plateia
suas certezas absolutas sobre o tudo e sobre o nada, se ser conservador é sair
de um espetáculo desta natureza sem um mínimo sentimento interno de que o
espetáculo tocou e remexeu em minha sensibilidade, sinceramente, eu o sou.
Tenho dito que teatro não é receita. Não há fórmula para se construir um bom
espetáculo. Há caminhos possíveis e há, sobretudo, estruturas narrativas que
podem ser mais ou menos abertas, mas acima de tudo, o teatro deve tocar até na
sensibilidade dos morcegos pendurados na caixa de cena. Teatro que não tira os
meus pés do chão, que não me faz dar cambalhotas de surpresa e alegria em minha
alma, teatro que necessita de debate para explicar ao público o que o distinto
público viu, teatro de tese, acadêmico no pior sentido, mas que se apresenta
moderninho, com todos os elementos
narrativos desestruturados, ou carregado de um sentido ideológico cuja
certeza está na frente, cuja história está na mão, teatro desta natureza não me
interessa, não toca a minha sensibilidade, não fala para muita gente, há muito
mais gente do que eu sozinho que sente e pensa assim, mas, por medo de ser
chamado de conservador (isto é quase uma maldição), cala. Ou consente. Na
década de setenta, em plena ditadura, quando o teatro era ferozmente
perseguido, o teatro passou por uma experiência semelhante, de realizar
espetáculos desesperados, quando não agressivos. Naquele instante sobressaíram
vozes como as de Paulo Pontes e Vianinha chamando à razão de volta: fazer
espetáculos que tragam o público para o teatro, em detrimento do que as então
ditas vanguardas faziam: espetáculos desconexos com a razão e a sensibilidade
do público, que então, na linguagem do momento, Paulo Pontes chamava a atenção
de que era preciso falar à realidade do público. De certo modo, o que está
havendo hoje repete o passado. E a bola da vez é o pós-dramático, cujos
espetáculos criam uma linguagem cifrada que se comunica apenas consigo e mais
ninguém. A esquizofrenia baixou no palco brasileiro. É preciso chamar a razão
de volta. Paulo Pontes e Vianinha também foram acusados de conservadores (eram
os caras da turma da palavra contra os caras da vanguarda). Muitas vezes eles
se defendiam também se dizendo de vanguarda (afinal ninguém quer ficar de fora
do barco das novidades). Mas a verdade o tempo decantou. E a obra dos caras da
palavra permaneceu como um legado de uma geração que enfrentou duramente a
ditadura, lutando para manter o autor brasileiro em cartaz, e o teatro com
público desejando teatro, lotando as casas de espetáculos. Acontece que hoje o
público desapareceu do teatro. Cadê o público? A culpa é de quem? da Rede
Globo? do Cinema? das mídias digitais? Ou do próprio teatro que não se comunica
com o mundo, ou o faz de modo que é preciso ter o livro do Lehmann aberto para
tentar entender as cenas que são propostas pelas novas vanguardas? Dos
espetáculos que eu vi no 18º Festival Recife do Teatro Nacional, inclusive o
mais belo de todos, o do Galpão, o que vi foram plateias vazias, e os poucos
que lá estavam éramos todos gente de teatro. Então, é preciso reconhecer que o
teatro vive uma entropia autodestrutiva. Cada vez mais fazemos teatro para
poucos. Cada vez mais fazemos teatro para nós mesmos. E sem público o teatro
perde a sua razão de ser. Meus amigos, meus inimigos, como escreveu Bandeira, o
velho bardo vive agora entre mil perigos. O teatro está morrendo. Viva o
Teatro!
Viva o teatro vivo do Galpão, por
exemplo, no espetáculo Nós, que comoveu a plateia até as lágrimas. Aí
vem a pergunta: bom teatro é o que faz o público chorar? Bom teatro é, do meu
ponto de vista, o que pega o público e o trás para dentro da cena,
metaforicamente, e o faz ser cúmplice da ação que o espetáculo realiza. O
espetáculo do Galpão contém todos os elementos da modernidade e, inclusive, da
pós-modernidade. Mas não é isso o que nele encanta, porque, antes de tudo, isto
é rótulo, é fórmula, é forma não é fundo, é corpo não é alma. O grande entrave
do pós-dramático é o texto. Há que negar necessariamente a tradição, e esta
tradição, diga-se, é erroneamente atribuída a Aristóteles, aos gregos, a
história. Do meu ponto de vista não há tradição alguma. Há linguagem. E há a
linguagem do teatro que foi, por sua vez, estudada por Aristóteles em sua
poética. Ora, se o texto é um dos elementos da tradição, então o texto precisa
ser superado em suas estruturas para ser contemporâneo, para ser pós-dramático.
Acontece que o nó do teatro contemporâneo é, antes da cena, o texto. Não se retira um elemento da linguagem sem
provocar no mínimo um estranhamento (epa!, isso parece Brecht!). E no caso do
texto, os elementos da estrutura narrativa são a ação e o conflito. Pois bem, o
pós-dramático para ser pós-dramático precisa eliminar justamente esses
elementos. O problema é quando não se acrescenta outro elemento em substituição
aos que foram eliminados. No caso do texto Nós os elementos de ação e
conflito foram retirados. Em seu lugar foram acrescentados dois outros: no texto,
a repetição, que cria uma empatia com a plateia, até mesmo porque a repetição
se dá no texto e não na cena. A cada vez que o tema central é repetido a cena é
representada de maneira diferente. O outro elemento acrescentado e que se
conjuga na estrutura da linguagem deste texto/espetáculo é o ritmo. A cena é
repetida no texto, representada diferente, e com um ritmo que vai se tornando
cada vez mais intenso até atingir o vórtice do movimento, até a total
destruição daquilo que está posto como imagem: uma mesa na qual se prepara uma
sopa que será servida à plateia. A cena vai da preparação de uma sopa a uma
orgia desconcertante, construindo a desconstrução do discurso, conduzido e
acrescentado pelo ritmo que o Galpão domina com mestria. E tudo isto com a conivência
da plateia, que se delicia quando percebe que tudo volta no texto, mas tudo
avança na cena. O espetáculo com a direção de Márcio de Abreu é um falso
simples. Marcio Abreu e Eduardo Moreira construíram uma dramaturgia
encantadora, minimalista, um bolero à maneira de Ravel, musical e repetitivo,
surpreendente e arrebatadora. Uma dramaturgia que fala ao nosso tempo, que é
política sem ser panfletária, que é contestatória sem ser propagandística, que
é realística sem deixar de ser poética. Que é teatro. Novo e antigo. Eterno e
moderno. Dramático e pós-dramático. E cheia de conflito. De dúvidas, de
incertezas, de crueldade, mas de um amor e de um humanismo comovente. No fim, a
festa, a sopa, o grande banquete. Teuda Bara e Eduardo Moreira fazem uma cena linda,
desnuda de corpo e alma, plena de verdade e de comoção. É lindo ver o Eduardo e
a Teuda nús, os corpos com as marcas do tempo, a verdade nua e crua, bela em
seu despojamento. Teuda Bara é daquelas atrizes que em mim me dão vontade de
dizer e digo agora: muito obrigado por você, pela sua arte, pelo seu talento,
pela sua generosidade. Nós é a celebração da vida e do teatro, do amor e
da esperança. No final, a festa rolando, eu fiquei embaixo na plateia,
aplaudindo sozinho a Teuda que acenava para que eu subisse no palco e fosse
abraçá-la. Antes, Ivana, docemente pegou na minha mão e me convidou para subir
com ela e dançar na festa em que se transforma o fim do espetáculo.Desculpa
Teuda, desculpa Ivana, mas o palco eu não ocupo nem quando eu dirijo o espetáculo.
Tenho por ele um respeito quase religioso. E creio que na função do espetáculo
somente os santos (olha Grotovski aí, gente) devem ocupá-lo. Mas, enfim, culpa
minha, fiquei com um beijo guardado na alma e uma dança adiada sim.
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