Crítica espetáculo ‘Nós’, do Grupo Galpão
Teatro é discotear onde dói
Além das arquibancadas, colocadas paralela uma a outra, o Teatro Luiz Mendonça, de formatação à italiana, acolheu a plateia nas demais cadeiras, para encenação do espetáculo “Nós”, produção do Grupo Galpão, que integrou a grade da programação do 18o Festival Recife do Teatro Nacional.
Acom direção é de Márcio Abreu que divide a dramaturgia com Eduardo Moreira, fundador do grupo, que está em cena com seus companheiros de sempre Antonio Edson, Chico Pelúcio, Júlio Maciel, Lydia Del Picchia, Paulo André e, finalmente, a grande protagonista desta montagem, Teuda Bara.
O texto foi composto a partir de colaborações e exercícios nos quais todo o Galpão participou, é bom lembrar. A ação se passa em uma cozinha na qual um grupo de pessoas prepara uma sopa. O texto é entrecortado pelas vozes coletivas que se atropelam. É, para cada um dos personagens, difícil prender a atenção geral. As pequenas histórias propostas são esgarçadas. Todos falam, mas é quase raro alguém estar disposto a ouvir. Neste sentido, as falas vão se intensificando em ritmo até o ponto em que a combustão exploda, literalmente, os limites do diálogo, na cena.
Há, eu diria, quase como um flerte com a impossibilidade de comunicação de Beckett, mas o que conflito aqui é de outra ordem. Pergunta-se: de que maneira é possível conjugar a difícil primeira pessoa do plural, o “nós”, sem anular o indivíduo, sem esmagá-lo? Há uma cena em que esta imagem se materializada. A personagem de Teuda é convidada a sair por decisão geral, mas se recusa, até que é expulsa. Empurrada. Jogada e posta dentro de um alçapão.
Há, porém, um outro “nós”, perpassando a encenação, eletrocutando as pontas dos fios que se emaranham. Suscita-se outra pergunta: em que medida é possível fechar todas as pontas de um projeto realizado em conjunto? Há, também, uma cena, magistral em que quase toda a companhia se amarra e se imobiliza.
Em seus 34 anos, o Grupo Galpão se dá um cruel exercício de enfrentamento de seus próprios fantasmas. Há, curiosamente, muita repetição. O recurso é usado de modo consciente como uma poderosa ferramenta de linguagem. Logo o Galpão que, com sua estética colorida, é, às vezes com razão, acusado de fazer mais do mesmo.
O recurso da repetição, a meu ver, traz algo de gostosamente irônico. Tanto nas partituras de cenas, junto com falas, que se desdobram, como marcações, em tons e intensidades distintas, como nas situações do cozimento de uma sopa que, o tempo todo, por suas interrupções, dá a entender que não vai ficar pronta. Mas fica. E o resultado deste trabalho, que periclitou, foi oferecido e compartilhado com a plateia. A caipirinha e a sopa. O pão e o álcool. A reflexão e o divertimento. Não é isso que o teatro tem de melhor para nos oferecer?
Quantas vezes não se ouviu também que o grupo Galpão envelheceu. Sim. E essa questão não é contornada. Ao contrário. É eviscerada a não mais poder numa comovente cena de entrega em que, os veteranos do Galpão, Teuda e Eduardo, estão juntos. E nus. Há que se ressaltar, dentre as muitas virtudes da direção de Márcio Abreu, uma em particular. A de conseguir tirar o melhor de cada ator. Todo o elenco obteve uma qualidade coletiva raramente vista. Além do mais, cada ator e atriz teve, particularmente, o seu grande momento em cena.
Teatro é discotear onde dói
Além das arquibancadas, colocadas paralela uma a outra, o Teatro Luiz Mendonça, de formatação à italiana, acolheu a plateia nas demais cadeiras, para encenação do espetáculo “Nós”, produção do Grupo Galpão, que integrou a grade da programação do 18o Festival Recife do Teatro Nacional.
Acom direção é de Márcio Abreu que divide a dramaturgia com Eduardo Moreira, fundador do grupo, que está em cena com seus companheiros de sempre Antonio Edson, Chico Pelúcio, Júlio Maciel, Lydia Del Picchia, Paulo André e, finalmente, a grande protagonista desta montagem, Teuda Bara.
O texto foi composto a partir de colaborações e exercícios nos quais todo o Galpão participou, é bom lembrar. A ação se passa em uma cozinha na qual um grupo de pessoas prepara uma sopa. O texto é entrecortado pelas vozes coletivas que se atropelam. É, para cada um dos personagens, difícil prender a atenção geral. As pequenas histórias propostas são esgarçadas. Todos falam, mas é quase raro alguém estar disposto a ouvir. Neste sentido, as falas vão se intensificando em ritmo até o ponto em que a combustão exploda, literalmente, os limites do diálogo, na cena.
Há, eu diria, quase como um flerte com a impossibilidade de comunicação de Beckett, mas o que conflito aqui é de outra ordem. Pergunta-se: de que maneira é possível conjugar a difícil primeira pessoa do plural, o “nós”, sem anular o indivíduo, sem esmagá-lo? Há uma cena em que esta imagem se materializada. A personagem de Teuda é convidada a sair por decisão geral, mas se recusa, até que é expulsa. Empurrada. Jogada e posta dentro de um alçapão.
Há, porém, um outro “nós”, perpassando a encenação, eletrocutando as pontas dos fios que se emaranham. Suscita-se outra pergunta: em que medida é possível fechar todas as pontas de um projeto realizado em conjunto? Há, também, uma cena, magistral em que quase toda a companhia se amarra e se imobiliza.
Em seus 34 anos, o Grupo Galpão se dá um cruel exercício de enfrentamento de seus próprios fantasmas. Há, curiosamente, muita repetição. O recurso é usado de modo consciente como uma poderosa ferramenta de linguagem. Logo o Galpão que, com sua estética colorida, é, às vezes com razão, acusado de fazer mais do mesmo.
O recurso da repetição, a meu ver, traz algo de gostosamente irônico. Tanto nas partituras de cenas, junto com falas, que se desdobram, como marcações, em tons e intensidades distintas, como nas situações do cozimento de uma sopa que, o tempo todo, por suas interrupções, dá a entender que não vai ficar pronta. Mas fica. E o resultado deste trabalho, que periclitou, foi oferecido e compartilhado com a plateia. A caipirinha e a sopa. O pão e o álcool. A reflexão e o divertimento. Não é isso que o teatro tem de melhor para nos oferecer?
Quantas vezes não se ouviu também que o grupo Galpão envelheceu. Sim. E essa questão não é contornada. Ao contrário. É eviscerada a não mais poder numa comovente cena de entrega em que, os veteranos do Galpão, Teuda e Eduardo, estão juntos. E nus. Há que se ressaltar, dentre as muitas virtudes da direção de Márcio Abreu, uma em particular. A de conseguir tirar o melhor de cada ator. Todo o elenco obteve uma qualidade coletiva raramente vista. Além do mais, cada ator e atriz teve, particularmente, o seu grande momento em cena.
Conhecido pela excelência musical e pelo sua ligação com a cultura popular, ao por em cena os atores cantando “Lama”, de Paulo Marques e Aylce Chaves, sucesso na voz de Núbia Lafayete, o Galpão, ao chafurdar com classe no brega, se conectou com os subterrâneos do Brasil profundo.“Comendo a mesma comida/ bebendo a mesma bebida/ respirando o mesmo ar”. Os versos famosos versos cantados à capela por Teuda e depois orquestrados em acompanhamento musical do grupo foram a pedra de toque para a plataforma estética, que transfigurou a fábula particular, de um grupo que se desentende, alçando-se numa visada sobre as questões atuais, como, de modo explícito, a explosão da barragem da Samarco. Mais não só esta explosão de dejetos químicos. O que jorra em cena é a lama diária nos afoga e nos enoja a todos.
O cenário de Marcelo Alvarenga, uma plataforma escura, é alterado para um espelho após a expulsão de Teuda. É como se, de modo impiedoso, as perguntas voltassem para o próprio grupo. Há um momento em que Eduardo Moreira pergunta: “para onde ir?”. Impossível não lembrar, com emoção, que esta é a mesma pergunta feita na peça “Caravana da Ilusão”, do mineiro Alcione Araújo. Porém, aqui não há um pai a se lamentar a ida. Nem a personagem de Teuda, que o tempo todo pergunta sobre o que estão os outros falando, assume essa posição matriarcal. Na poltrona, cercada de paparicos, numa perversa e divertida reversão, Teuda é readmitida. Para onde ir?
Ao olhar para si, sem peias e nem bridas, o Galpão construiu uma obra de arte monumental que não ficou no exercício de narcisismo. Alcançou a dimensão da metáfora. Pensou não só o lugar da companhia, o que fazer daqui 5, 10 anos, mas refletiu sobre o teatro como um todo, das razões de continuar prosseguindo.
Mas eu retomo a pergunta. Para onde ir? Eu fico com a resposta do Galpão. Vamos à festa. É esse o convite que o grupo faz. E ao chamar a plateia para encerrar o espetáculo com eles, em cima do palco, como uma homenagem ao seus trabalhos de teatro de rua, era como se o Galpão nos dissesse que teatro é discotecar onde dói; é fazer folia com nossas próprias feridas; é sapatear, sem piedade, sobre o que somos.
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