A história de
loucura no contexto da atualidade.
Memórias de um Cão, direção de Márcio Marciano.
Coletivo Alfenim (João Pessoa).
Elena Vássina
O coletivo
Alfenim, sob direção de Márcio Marciano, abriu o Festival Recife 2016 no
belíssimo Teatro de Santa Isabel apresentando a história de Rubião, um
tragicômico personagem machadiano que, ao ter herdado uma fortuna de seu amigo
Quincas, é transformado de repente de “professor em capitalista” e decide mudar
para a Corte, onde ele vive na pele a principal máxima do Humanitismo: “ao
vencido, ódio ou compaixão; ao vencedor, as batatas”.
As peripécias
da história de Rubião são narradas pelos olhos do cão – daqui vem o título da
peça que mescla também o nome do outro romance de Machado. Este cão, que se
chama igual ao seu dono Quincas Borba, na atuação criativa, lúdica e cheia de
delicadeza de Paula Coelho, é a única voz lírica na polifonia das outras vozes
dos personagens humanos (que, aliás, no desenrolar da narrativa cênica se
revelam como absolutamente desumanos), dos fantoches e das máscaras. No fim das
contas, é o cão que, paradoxalmente, se torna uma figura mais humanista (ao
contrário do Humanitismo que reina no mundo ao redor) e sedutora do espetáculo,
a única que evoca empatia da plateia. (Peço perdão pelo aparte, mas não posso não
lembrar do outro e bem diferente, mas não menos fascinante personagem-cachorro
criado por Servílio Gomes em Vau da Sarapalha). E talvez essa
figura cênica do cão seja no espetáculo o reflexo mais fiel da quintessência do universo machadiano, pleno de
sutilezas de meio tons, de complexidade dos tipos e de um inconfundível olhar
irónico.
Ao ter
encontrado realmente “um achado” – o
texto maravilhoso do “Quincas Borba”, de Machado de Assis, o Coletivo Alfenim
conseguiu revelar nele (e também nas referências às outras obras machadianas)
uma surpreendente atualidade. Sabe-se que um dos dons fantásticos que une as
obras clássicas é a capacidade de desvelar os novos sentidos assim que elas
entram no contexto de atualidade. Uma experiência verdadeiramente inovadora na
interpretação diretorial de obra clássica liberta-a daquilo que já nos parece
óbvio e banal no texto notório, criando “um estranhamento” (se usarmos o termo do
formalismo russo) que faz que nossa percepção habitual, automática, ou seja,
nosso “reconhecimento” de obra transformassem em uma “visão” viva e instigante.
É exatamente
isso que acontece na direção perspicaz de Márcio Marciano que, junto com o ensemble afinadíssimo dos atores e dos
músicos apresenta no palco os personagens e os acontecimentos da remota época
machadiana de tal jeito como se tudo passasse no Brasil de aqui e de agora. E
para conseguir isso nem foi preciso vestir os personagens de roupas modernas,
nem desconstruir o texto clássico.
As ultimas
cenas de loucura de Rubião (na excelente atuação de Adriano Cabral) que veste o
paletó as avessas, como se fosse uma camisa de força, criam uma imagem cênica
forte que metaforicamente condensa toda a loucura social e política dos tempos
presentes, e não apenas no Brasil. Como falou Mikhail Bakhtin, “Cada época
reacentua a seu modo as obras de um passado recente. A vida histórica das obras
clássicas é, em suma, um processo ininterrupto de sua reacentuação
sócio-ideológica.”
Nenhum comentário:
Postar um comentário