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A Renascer Produções Culturais organiza o Seminário Internacional de Crítica Teatral desde 2005 evento que reúne estudantes, profissionais e estudiosos de diferentes formações acadêmicas em um compartilhar de experiência, opinião e conhecimento dos mais diversos países, com o propósito maior de fazer avançar o desenvolvimento do discurso crítico sobre a criação teatral, em todo o mundo. O exercício da crítica de teatro como disciplina e a contribuição para o desenvolvimento das suas bases metodológicas constituem, assim, a prática do Seminário Internacional de Crítica Teatral, levada a cabo por críticos do teatro e uma gama de especialistas nas áreas de conhecimento que entrecruzam comunicação, história, filosofia, arte, literatura e teoria teatral, dentre outras. O Seminário Internacional de Crítica Teatral é um projeto que busca implementar no estado de Pernambuco um espaço permanente de debate sobre a estética teatral contemporânea. A edição 2011 tem como tema o Teatro fora dos Eixos. Todas as atividades desenvolvidas pelo seminário terão como base a discussão das poéticas cênicas que estão se propondo em produzir trabalhos que estão fora do cânone do teatro ocidental.

sábado, 3 de dezembro de 2016

Resenha do espetáculo Ossos - Por Elena Vássina


Subindo a escada que leva ao inferno.



 Elena Vássina



Ossos”, baseado em livro de Marcelino Freire, direção de Marcondes Lima, Coletivo Angu de Teatro


Este espetáculo, das qualidades artísticas raras e incontestáveis, cativa logo e, desde a primeira cena, faz o espectador mergulhar na atmosfera densa e envolvente da peça de Marcelino Freire para acompanhar seu protagonista, o dramaturgo Heleno de Gusmão no caminho de volta (e no de volta na memória também) à sua terra natal, à Sertânia, no interior de Pernambuco. Heleno viaja até lá para entregar aos familiares os restos mortais do seu amante que ele conseguiu resgatar no IML em São Paulo.


Logo no início do espetáculo se nota um importante procedimento composicional que será usado na tessitura da linguagem artística: a contraposição da figura do narrador-protagonista (é uma atuação contida e marcante de André Brasileiro que é preciso em cada gesto e em voz), vestido de terno branco, e de um coro dos urubus que cria no palco uma dinâmica e assustadora imagem preta. Aliás, assistindo ao coro de urubus que é a personagem tão importante, quanto o dramaturgo Heleno, é difícil não se lembrar dos Caprichos de Francisco de Goya, o N 72 que tem o título “No te escaprás” ou do celebre poema “O Corvo”, de Edgar Alan Poe, onde “esta ave agoureira dos maus tempos ancestrais” repete como mote “Nunca mais” (Nevermore).


Assim como as cores, o encenador Marcondes Lima usa contrastes tempo-rítmicas das cenas (que se lembram muito a composição dos movimentos na música sinfónica), as bruscas mudanças do andante ao molto vivace, contraposições das atmosferas – da intimista (como, por exemplo, na cena do sexo do protagonista) à épica (na atuação de Arilson Lopes que cria com tanta maestria o personagem Seu Lourenço, o motorista que leva os ossos no seu carro funerário). O enredo da peça não segue a ordem cronológica, mas se constrói da montagem, às vezes, bem cinematográfica dos fragmentos: de flashbacks de memória, do tempo presente e de alucinações. Assim se cria a linguagem cênica lacônica e condensada que prende atenção do espectador desde o início até o final.


O espetáculo de pulsação intensa e da singular beleza lúgubre faz transcender o plano de cotidiano da história. Na narrativa dramática tecida por meio de discurso indireto livre se intercalam as falas do autor e do protagonista. Sendo um só, ele mantém o tom intimista com a plateia, sua voz calma e clara entra logo antes ou após as cenas do coro de urubus construídas em ritmo impetuoso e intenso. É este coro que eleva a ação dramática ao patamar do relato trágico sobre o destino humano onde o amor anda de mãos dadas com a morte. Acontece uma transfiguração mágica: o relato concreto e biográfico (ou auto pornográfico, como o define o autor) projeta-se ao plano simbólico, atingindo uma dimensão mítica e trágica. E não é por acaso que o papel desempenhado pelo coro dos urubus se assemelha ao do coro da tragédia antiga que representava a voz do destino. No “Ossos” trata-se do trágico destino do homem solitário jogado ao abismo do apodrecido submundo paulistano onde em vez de amor se vende sexo, onde a vida é uma sobrevivência na solidão e não é raro que ela tem o final violento.


A densidade e a rara beleza visual e plástica do espetáculo se deve à forte a à talentosa mão do encenador Marcondes Lima que participa também como cenógrafo, figurinista e ator. Ele conseguiu unir no conjunto afinado todos os criadores do espetáculo: os excelentes atores que impressionam por sua preparação vocal e plástica, a iluminação contida e, ao mesmo tempo, expressiva (Jathyles Miranda) e a música (Juliano Holanda) que, parece, nasceu junto com o próprio texto dramático. E tudo isso sem falar da beleza sombria do texto de Marcelino Freire que já é um dos consagrados escritores brasileiros.


O espetáculo mexe com o mais secreto e intimo, incomoda e, ao mesmo tempo, encanta os espectadores levando-os à tão almejada catarse, ou seja, à purificação de alma no sentido aristotélico.

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