Subindo a escada
que leva ao inferno.
Elena
Vássina
“Ossos”, baseado
em livro de Marcelino Freire, direção de Marcondes Lima, Coletivo Angu de
Teatro
Este espetáculo, das qualidades artísticas raras e incontestáveis,
cativa logo e, desde a primeira cena, faz o espectador mergulhar na atmosfera
densa e envolvente da peça de Marcelino Freire para acompanhar seu
protagonista, o dramaturgo Heleno de Gusmão no caminho de volta (e no de volta
na memória também) à sua terra natal, à Sertânia, no interior de Pernambuco.
Heleno viaja até lá para entregar aos familiares os restos mortais do seu
amante que ele conseguiu resgatar no IML em São Paulo.
Logo no início do espetáculo se nota um importante procedimento
composicional que será usado na tessitura da linguagem artística: a
contraposição da figura do narrador-protagonista (é uma atuação contida e
marcante de André Brasileiro que é preciso em cada gesto e em voz), vestido de
terno branco, e de um coro dos urubus que cria no palco uma dinâmica e
assustadora imagem preta. Aliás, assistindo ao coro de urubus que é a
personagem tão importante, quanto o dramaturgo Heleno, é difícil não se lembrar
dos Caprichos de Francisco de Goya, o N 72 que tem o título “No te escaprás” ou
do celebre poema “O Corvo”, de Edgar Alan Poe, onde “esta ave agoureira dos
maus tempos ancestrais” repete como mote “Nunca mais” (Nevermore).
Assim como as cores, o encenador Marcondes Lima usa contrastes
tempo-rítmicas das cenas (que se lembram muito a composição dos movimentos na
música sinfónica), as bruscas mudanças do andante
ao molto vivace, contraposições das
atmosferas – da intimista (como, por exemplo, na cena do sexo do protagonista)
à épica (na atuação de Arilson Lopes que cria com tanta maestria o personagem Seu Lourenço, o
motorista que leva os ossos no seu carro funerário). O enredo da
peça não segue a ordem cronológica, mas se constrói da montagem, às vezes, bem
cinematográfica dos fragmentos: de flashbacks
de memória, do tempo presente e de alucinações. Assim se cria a linguagem cênica lacônica e condensada que prende
atenção do espectador desde o início até o final.
O espetáculo de pulsação intensa e da singular beleza lúgubre faz
transcender o plano de cotidiano da história. Na narrativa dramática tecida por
meio de discurso indireto livre se intercalam as falas do autor e do
protagonista. Sendo um só, ele mantém o tom intimista com a plateia, sua voz
calma e clara entra logo antes ou após as cenas do coro de urubus construídas
em ritmo impetuoso e intenso. É este coro que eleva a ação dramática ao patamar
do relato trágico sobre o destino humano onde o amor anda de mãos dadas com a
morte. Acontece uma transfiguração mágica: o relato concreto e biográfico (ou
auto pornográfico, como o define o autor) projeta-se ao plano simbólico,
atingindo uma dimensão mítica e trágica. E não é por acaso que o papel
desempenhado pelo coro dos urubus se assemelha ao do coro da tragédia antiga
que representava a voz do destino. No “Ossos” trata-se do trágico destino do
homem solitário jogado ao abismo do apodrecido submundo paulistano onde em vez
de amor se vende sexo, onde a vida é uma sobrevivência na solidão e não é raro
que ela tem o final violento.
A densidade e a rara beleza visual e plástica do espetáculo se deve à
forte a à talentosa mão do encenador Marcondes Lima que participa também como
cenógrafo, figurinista e ator. Ele conseguiu unir no conjunto afinado todos os
criadores do espetáculo: os excelentes atores que impressionam por sua
preparação vocal e plástica, a iluminação contida e, ao mesmo tempo, expressiva
(Jathyles Miranda) e
a música (Juliano Holanda) que, parece, nasceu junto com o próprio texto
dramático. E tudo isso sem falar da beleza sombria do texto de Marcelino Freire
que já é um dos consagrados escritores brasileiros.
O espetáculo mexe com o
mais secreto e intimo, incomoda e, ao mesmo tempo, encanta os espectadores
levando-os à tão almejada catarse, ou seja, à purificação de alma no sentido
aristotélico.
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