salada mix, muda
Paulo Vieira
Eu vinha esta manhã andando pela calçada de Boa Viagem quando um homem, um
senhor, com olhar messiânico e um maço de papeiszinhos nas mãos se dirigiu a
mim e me estendendo um deles me perguntou se eu receberia a palavra do Senhor.
Eu tenho por hábito receber todos os papéis que me dão nas ruas, nos sinais.
Sem dizer palavra, estendi a mão e recebi a tal palavra do Senhor. Fiquei
pensando que o tempo que vivemos é de um messianismo atroz. Aquele senhor é um
militante da palavra do Senhor. E eu que não sou militante de nada, eu que tenho o mau hábito de desconfiar de
todas as verdades, eu que sofro do mal de Pilatos, fico me perguntando sobre as
verdades desse mundo, e me espanto quando as vejo proclamadas em nossas caras
com tamanhas certezas. Fiquei pensando estas coisas não apenas pelo papelzinho
com a palavra do Senhor, mas igualmente pelo espetáculo que ontem eu vi no
Teatro Barreto Júnior, dentro da programação do Seminário Internacional de
Crítica Teatral, em Recife. Um teatro da militância, um teatro da verdade, a
palavra do senhor Marx batendo na cara da plateia. Gente, digo para mim mesmo,
não conheço nada mais chato do que teatro de militância. Não conheço nada mais
desalentador do que ator gritando em transe as verdades eternas das lutas de
classe. E esse foi justamente o caso do espetáculo H(EU)stória - o tempo em
transe, que apresenta a trajetória de Glauber Rocha na vida brasileira. O
problema da militância é que ela não é racional, embora queira ser a própria
expressão da racionalidade. O problema daquilo que se pretende teatro dialético
é porque não contém dialética alguma, porque se contivesse as contradições que
emergem no discurso seriam postas em questão, mas o teatro militante não está
preocupado com as suas contradições, senão com as contradições do… sei lá…
vamos chamar de “sistema”. Por exemplo: os discursos políticos de Glauber Rocha
contra o sistema são gritados, literalmente, pelos atores, e pela quantidade de
perdigotos expelidos, eu diria mesmo que são cuspidos na cara da plateia, que,
por sorte, se encontra em salvaguarda deste desconforto, pela distância que se
encontra dos atores. Mas não se ouve uma única palavra de elogio ao sistema por
parte do Glauber Rocha. E ele o fez aos montes: inclusive rasgando-se em louvor
a ditadura militar. E isso pela TV em programa semanal. E isso o espetáculo não
leva em conta, talvez porque não contenha, aos olhos dos atores, um gérmen
sequer de verdade, porque a verdade não é o que houve, mas aquilo em que se
quer acreditar. Ou aquilo que interessa à propaganda ideológica.
Nunca houve uma pergunta tão sincera
e tão angustiante quanto a de Pilatos para Jesus que, aliás, diante da sua
própria loucura ideológica, confrontado em seu momento crucial, talvez até
despertando do seu torpor messiânico, no mutismo em que se encerrou diante do
poderoso romano, talvez tivesse feito a si mesmo esta mesma pergunta, e por
isso tenha se calado. Então, eu que não creio em Jesus nem em Marx, eu que não
creio nos deuses nem nos homens, eu que não creio na militância nem na pureza,
eu que não creio em partidos nem em igrejas, diante de espetáculos dessa
natureza, eu me calo. Pronto.
Mas não posso deixar de dizer que
antes mesmo do espetáculo os atores, recebendo o público do lado de fora do
teatro, são muito simpáticos, inclusive oferendo-nos uma bebida gostosinha,
quentinha, docinha, deliciosa. Quando entramos na sala de espetáculos,
deparamo-nos com uns arranjos de velas, folhas e incensos que nos remetem para
algum tipo de ritual místico, religioso, sei lá. Ora, isso por si já nos dá a
leitura do que está por vir no espetáculo, que acaba tomando um caminho
inesperado até então, e nele se mantém. O que me parece é que falta alguma
definição no sentido da encenação. No começo me parecia que espetáculo que
tenha algum caráter místico necessite de uma sonoridade própria, com
instrumentos de percussão sendo executados ao vivo, ao invés de se valer da
solução mais fácil que é a sonoridade de uma reprodução mecânica. Ao depois,
aquilo que parecia não era, e os atores, na sequência, passaram a gritar
desesperadamente as verdades das suas verdades, e aquilo que deveria ser um
espetáculo de teatro passou a ser um espetáculo de messianismo ideológico, e
com isso os elementos do teatro, atores e tudo o mais, se perderam na sua
função. E havia um tom de raiva na interpretação dos atores, um tom
intimidador, laudatório, bem diferente do que foi na entrada do teatro, quando
tudo parecia paz, quando o encontro parecia o desejo, quando os atores não
haviam ainda revelado o que estava escondido: a certeza na frente e a história
na mão.
Não me incomoda o teatro, qualquer
que seja, se há teatro. Todos os discursos são possíveis e desejáveis no
teatro. Mas para isso, do meu ponto de vista, é necessário atentar para o
teatro enquanto linguagem, começando pelos atores que devem buscar a expressão
em si mesmos. Há um belo momento no espetáculo, quando um ator rodopia com um
alguidar repleto de incenso criando uma imagem poética linda, desenhando o espaço
com a fumaça, e nos dando a ilusão de que aquele seria o tom do espetáculo.
Também não foi. Então, apenas nos restou comer uma salada em silêncio. E ir
para a cama, calado.
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