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A Renascer Produções Culturais organiza o Seminário Internacional de Crítica Teatral desde 2005 evento que reúne estudantes, profissionais e estudiosos de diferentes formações acadêmicas em um compartilhar de experiência, opinião e conhecimento dos mais diversos países, com o propósito maior de fazer avançar o desenvolvimento do discurso crítico sobre a criação teatral, em todo o mundo. O exercício da crítica de teatro como disciplina e a contribuição para o desenvolvimento das suas bases metodológicas constituem, assim, a prática do Seminário Internacional de Crítica Teatral, levada a cabo por críticos do teatro e uma gama de especialistas nas áreas de conhecimento que entrecruzam comunicação, história, filosofia, arte, literatura e teoria teatral, dentre outras. O Seminário Internacional de Crítica Teatral é um projeto que busca implementar no estado de Pernambuco um espaço permanente de debate sobre a estética teatral contemporânea. A edição 2011 tem como tema o Teatro fora dos Eixos. Todas as atividades desenvolvidas pelo seminário terão como base a discussão das poéticas cênicas que estão se propondo em produzir trabalhos que estão fora do cânone do teatro ocidental.

terça-feira, 6 de dezembro de 2016

NÓS

Espetáculo ‘Nós’ é sintoma e remédio para o mal estar da pós-modernidade
Por Vinícius Vieira
Professor e jornalista

A incapacidade do homem pós-moderno de lidar com o que há de humano em si, com o encontro, a alteridade compõe o ponto nevrálgico do espetáculo “Nós”, do imponente Grupo Galpão (MG). Em zona de conflito cíclico, a condição humana é desenhada, na peça, em contexto de repetições, ruídos, interrupções, incapacidade de ser e impossibilidade de sentir o outro. O trabalho foi apresentado dentro da programação do 18° Festival Recife do Teatro Nacional, na quarta (23) e quinta (24), respectivamente, no Teatro Luiz Mendonça.

O discurso levado à cena é polifônico, com referências filosóficas, da literatura russa, da música, com fortes influências dos temas emergentes que assolam a sociedade: a violência, as catástrofes, o terrorismo, as intempéries sociais como o preconceito. Os enunciados partem de uma conversa cotidiana em uma cozinha – espaço da casa, esfera da intimidade, socialmente convencionado como lócus de partilha, comunhão. Mas rapidamente os enlaces começam a se esfacelar, pois as figuras apresentadas estão aprisionadas na individualidade. Esse ponto de partida possibilita ao espectador projetar-se na cena, despertando inquietações e angústias no observador.

As ações são postas em um espaço cênico fluido o qual se transforma em territórios múltiplos e instáveis, que partem da esfera local com ressonância no global. O caótico e a provisoriedade são fisicalizados na cenografia funcional de Marcelo Alvarenga, a qual possibilita aproximação e distanciamento do fundo do palco, deslocamento de porta, criação de rampa que conduz o homem a ele mesmo – ao fundo, um espelho revela a imagem de quem o observa. É como se a cenografia tentasse nos salvar, nos lembrar, bradar nossa potencialidade para o encontro com nós mesmos e com as demais pessoas.

A canção “Lama” entrecorta as falas dos atores e é usada na encenação como recurso poético potente para questionar o que somos em tom boêmio e jocoso, remetendo ao clima melancólico dos finais de festa (chegamos ao fim da humanidade e só nos resta lamentar?). A música é cantada e tocada pelos próprios atores em ações cômicas, nos constrangendo divertidamente com o ridículo daquilo que escolhemos para viver. O cômico é amplificado pelas ações do elenco que se movimenta, anda, para em dissonante desespero.

A sonoplastia ganha prominência na orquestração cênica ao acentuar o sentimento de solidão e abandono reproduzindo, a partir da fala dos atores, ecos, sublinhando momentos pontuais da fala, reverberando o mal estar social, explodindo em nós bombas que aterrorizam, desvelando o ponto no qual chegamos e aquilo que, talvez, ainda poderemos ser. O desenho de som no espetáculo é posto entre o registro eletrônico e o ao vivo.

A dramaturgia de Marcio Abreu – que também assina a direção – e Eduardo Moreira é dispare, fragmentada, sem linearidade. Nela, o diálogo está em crise. Todos falam sem ouvir e sem serem ouvidos. Lançam perguntas, mas permanecem com a ausência de respostas. Estão agrupados na solidão da existência e daquilo que fizeram dela. Em cena, as personagens não são apresentadas em contornos psicológicos que justifiquem suas ações. Embora as tensões provenientes das relações humanas decadentes, o conflito exposto é resultado da relação do homem com o mundo, as estruturas de poder que o afeta, mas que são criadas e mantidas por ele. Aliás, o texto apresentado desafia o modelo clássico do drama e surge diretamente da cena, de improvisações realizadas pelos atores na sala de ensaio, procedimento influenciado pelas criações coletivas e processos colaborativos com forte presença nas décadas de 1970 e 1990.

A encenação concebe com sofisticação imagens cênicas de grande impacto e múltiplos sentidos. A sopa, preparada pelos atores durante a peça e compartilhada com a plateia, surge como solução para requentar a nossa humanidade em contexto congelante. Os limões jogados no ar revelam a acidez proveniente do âmbito social no qual afetamos e somos afetados. Eles são transformados em bebidas e distribuídos ao público. Mais uma vez, a solução apresentada parece ser o contato com o outro.  Falando do que se come e bebe, é impossível não destacar os cheiros que a cena exala: de verduras, legumes, o forte odor do alho, da sopa de legumes em cozimento.

E em meio ao panorama caótico, de incertezas e liquidez, do medo de sentir medo - o qual cria barreiras nas relações interpessoais – de preconceito às minorias e a precarização do ser artista, não adianta clamar pelas divindades. Chamar os profetas em busca de remédio para o mal que nos assola parece não abarcar a complexidade de nossas ações. Isso já não é o bastante.  

O pronome pessoal que intitula a obra responde quem pode nos despertar e desviar dos vícios e letargias, “Nós”. Para o Galpão, somos o messias de nós mesmos e o teatro torna-se o templo que nos (re)liga. O discurso parece ter convencido a plateia que subiu ao palco do Luiz Mendonça, nesta quinta-feira, ou dançou de onde estava para reaprender com o outro como se reconectar, restabelecer laços. Foi fácil: olho no olho, sorriso no rosto enquanto o corpo se mexia ao som de I want to break free, do grupo britânico Queen. No palco, agora pista de dança, muitos abraços apertados - até romantismo entre um casal com direito a beijo na boca teve. Era visível os olhares fascinados com a coletividade. O Galpão conseguiu, de fato, arrebatar o Recife e oferecer, com muita beleza e dignidade, aquilo que o teatro é por essência: comunhão.



Assista ao teaser do espetáculo 'Nós': https://vimeo.com/161677260 (se possível, inserir o vídeo na publicação)

Um comentário:

  1. Olá Vinícius! Tudo bem?

    Estou fazendo um trabalho para a disciplina de Crítica Teatral no curso de Artes Cênicas da UFOP e por este motivo descobri este blog. Gostaria de dizer, primeiro, que me identifiquei bastante com a sua forma de escrita crítica. É parecida com o modo como gosto de falar sobre as coisas que vi, intercalando observações a nível especializado (sobre os elementos do espetáculo, suas proposições de sentido, etc.) com relações com outras referências diversas, bem como sobre impactos possíveis causados no espectador. Isso tudo para dizer que gostei bastante de ler suas críticas!

    Sobre esta, em específico, tenho discordâncias apenas com relação à recepção de alguns momentos do espetáculo (mas isso é super comum, não é mesmo? Termos impressões sensoriais e interpretações diferenciadas sobre uma peça). Algumas coisas apontadas como situações que direcionariam o espectador para uma comunhão ou para um caminho de solução coletiva me tocaram de outro modo, sob um aspecto de cumplicidade com o que há de pesado em alguns acontecimentos. Por exemplo, o momento em que a sopa é oferecida à platéia, para mim, evidencia a cumplicidade que temos ao assistir a vida e não tomarmos uma atitude. É como se eles atravessassem a questão do apenas olhar e nos levassem para o fazer parte daqueles acontecimentos (não me recordo ao certo, mas pelo que me lembro a sopa é servida após uma certa provocação cênica ou textual sobre algo tenso, desagradável) como seres que, por se omitirem, permitem que aquilo continue. Esta sensação se repete para mim no momento em que todos estão em cima da Teúda na cadeira e também ao final, quando acontece a dança. É como se fôssemos conduzidos a fazer parte desta sociedade espetacular, onde muitos se divertem ou não têm consciência das desumanidades que acontecem.

    Apesar desse desacordo perceptivo, sua crítica é bem cuidadosa e me contempla enquanto espectadora e estudante de teatro! Agradeço!

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