SE A GENTE PODE VOAR, PORQUE TROPEÇAR NOS DEGRAUS?
* Por Chico Cardoso
O ambiente é estranho, deveria nos situar na garagem de um edifício, entretanto, o palco desnudo, rasgado do sonho, imprime uma sensação demasiado realista, enquanto o onírico é evocado para um jogo teatral que propõe uma transição do mundo real, para o imaginário. Nele, uma rainha cheia de feitiços decretou exílio aos personagens que poderiam, juntos, lhes dar a eternidade. Nessa garagem duas crianças ou quase adolescentes, ficam presas pela queda de energia e tentam usar os degraus da escada do prédio, mas a menina cai gravemente machucada no pé, o que parece ser a chave para a entrada dessa rainha má no mundo real e os arrasta para o seu mundo. Quando os garotos se dão conta de que estão em outro universo, é tarde para voltar ou acordar do pesadelo. Daí começa uma aventura nada empolgante. Mas explico porque mais adiante.
Para alcançar a eternidade, a rainha manda que os meninos embarquem numa viagem estranha para apanhar um pelo do gato prateado, um pedaço da fita do vestido da mulher cara de leque e uma chave com uma espécie de lorde inglês futurista e, caso fracassem, jamais retornariam à garagem do edifício.
Sim, é um espetáculo infantil. Ou pelo menos, na visão da Cia Cacos e do autor/diretor Francis Madson. O que é muito interessante é a liberdade com que essa companhia de teatro, formada por jovens artistas, vem experimentando no palco amazonense. Propõem sair das convenções do teatro infantil e oferecem um quebra cabeça com peças nada convencionais que discutem medo, angustia e o temor que a maldade se torne perene. Ainda que de forma estranha, a cena é fascinante.
Tim Burton, no cinema, por exemplo, criou uma linguagem muito distante da Disney, para contar suas estórias. Seu mundo é macabro e sombrio, mas sempre calçado no onírico, que abranda a linguagem e a deixa poética para o publico infantil, está nos filmes “A Noiva Cadáver” e no mais recente “Alice no País das Maravilhas”. Assim, penso que a Companhia poderá dar um tratamento mais radical na proposta, para que ela se feche e encante mais.
Agora explico porque não empolgou. O que ainda impede a amarração da proposta é a direção acanhada e descuidada, principalmente, com as técnicas vocais necessárias para desnudar o palco. Isso fez com que o texto escapasse, prejudicando a construção cênica da estória. O público não entrou no jogo. A Rainha exagerada em suas expressões, voz esganiçada e ilegível, apagou o brilho do figurino criativo e da própria personagem. Totalmente ilegível ficou a voz do ator que interpreta o Lorde. Ele jogou todo seu texto fora. A mulher cara de leque, que pareceu ser belíssima, interpretada por Taciano Soares, toma distância do espectador, justamente por não deixar fluir a voz e por vezes, esconder as falar que tornariam mais claras as intenções da personagem, neste caso foi o figurino, que mete o leque na frente da boca do ator. Destaque para o gato, interpretado por Dyego Monzzaho, cuja projeção vocal alcançou o espectador e foi a personagem mais cativante, paradigma a ser seguido na companhia. Quanto a menina e menino, não fica claro se crianças ou adolescentes, posto que o ator proponha em sua interpretação uma limpeza daquele irritante traço infantilóide, para o qual a atriz resvalou. Descuido, portanto, da direção.
O texto é contemporâneo, a soma de seus ingredientes fortalece a proposta inovadora para o jogo teatral. O resultado no palco acaba não valorizando o que é simples na dramaturgia, pois o diretor tentou colocar-se à frente do autor. Se nos é permitido voar na imaginação, a direção não poderia ter tropeçado nos degraus. Esse é o ponto em que a companhia deverá se debruçar nos próximos laboratórios. A direção deste espetáculo precisa redimir o elenco dos tropeços e realinhá-lo para uma interpretação limpa e clara. De qualquer forma temos um belo insight a caminho e, no futuro da Cia Cacos, podemos ter revelações surpreendentes para o teatro infantil.
* Chico Cardoso, diretor teatral.
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