Os fios invisíveis das nossas cabeças
(Crônica pensando em Caio F.)
Kil Abreu
Conheci o Caio Fernando primeiro com os Morangos mofados, sucesso editorial que eu recebera em uma caixa grande, em uma periferia distante de Belém, como presente de um outro Caio, o Graco Prado, então dono da Brasiliense. Naquele tempo eu lia a revista da editora, a Primeiro Toque, e decidi em certo momento mandar uma carta tentando pechinchar o preço de algum livro, explicando toda a dureza daqueles dias, a falta de grana e o desejo de matar a sede no catálogo que, de fato, faria toda a diferença naquele início dos anos 80. O velho Graco, que eu não cheguei a conhecer pessoalmente, por algum motivo que ele também nunca se preocupou em explicar passou a me mandar, e por um bom tempo, caixas de livros de onde saltavam os espantos de gente da melhor qualidade.
Em coleções como a Cantadas Literárias e a Encanto Radical eu e uma geração de caras descobriam uma igreja à qual fazíamos visitas dedicadas, rezando pelos versos de Leminski, entre uma biografia de Marx e outra de Nietszche, entre um porre com Charles Bukowski e uma roda para estudar o trotskismo sob as manhãs calorentas do Colégio Paes de Carvalho. A certa altura apareceria o pornográfico e fundamental Porcos com Asas (menos pela literatura, mais pela política), dos italianos Marco Radice e Lidia Ravera, quando garotos e garotas, “tarefeiros” do PC italiano, eram narrados entre aventuras sexuais e militância, e sem nenhuma ortodoxia.
Nenhum destes autores foi tão essencial quanto o Caio Fernando. Literatura menor para alguns, escritor de cabeceira para muitos, ele foi o cara que sintetizou – talvez próximo àquilo que se convencionou chamar obra geracional – estas perspectivas todas, existenciais e políticas, em um momento no qual precisávamos demais de parceiros para meditar sobre aquele momento estranho pós-ditadura, com a sombra de um passado próximo que quem nasceu no fim dos anos 60 viveu apenas “acidentalmente” e sob a perspectiva incerta das mudanças na conjuntura social - e íntima – que atravessávamos. Olhando agora e desta distância talvez não seja demais dizer que muitos dos que tinham 18, 20 anos em meados dos 80 se aproximavam da sua literatura por compartilhar perguntas de dentro deste entremeio histórico, de uma geração que não viveu a luta e a barra setentista – como ele, exilado, viveu –, nem militou, nem desbundou. Estávamos em um lugar também incômodo de um Brasil a meio caminho de muitas coisas que só mais adiante se inaugurariam na política e no comportamento . E o Caio, que vivera intensamente as duas passagens, fazia da sua obra uma reflexão funda sobre as estruturas de sentimento que eram possíveis - sem sociologia, em chave pessoal e intransferível.
Zanzibar, Jad-bal-ja...
Estas notas talvez sirvam a uma aproximação ao espetáculo da Cia. do ator Nu. Ao assistir a Fio invisível da minha cabeça fica clara esta disposição do autor em remoer o fracasso que, representado em perspectiva íntima, é também sumo deste complexo momento da sociabilidade. No debate depois do espetáculo o Jorge Bandeira intuiu, com razão, uma aproximação com Beckett. E creio que esta intuição não se deve exatamente às coordenadas de linguagem do teatro beckettiano, das quais o texto guarda distâncias importantes, mas a um sentido essencial que também está em Caio, que é este da exploração poética do ato fracassado, do sujeito em busca ou em compasso de espera (da subjetividade, da História). E mais: diante de circunstâncias propositalmente borradas - personagens sem nome, um trajeto da ação quase em abstrato, apoiado apenas na informação do estado de natureza do mundo (a natureza física, chuva; a natureza solitária do sujeito, unidas diretamente pela mediação da linguagem). O ponto de chegada parece firme, mas está destinado também ao malogro. Porque chegar ao destino não significa arredondar o impasse, resolver a questão. Ao contrário, significa o anúncio do desespero e a demarcação radical do ilhamento.
O que logo se anuncia e vai ganhando evidência no decorrer da encenação a que assistimos em Recife é a de que a montagem dirigida por Breno Fittipaldi não quer correr o risco de afundar seus pés na dramaticidade. Não há muita simpatia pela idéia de conduzir a atuação rumo a uma composição psicologizada, de estudo dos estados da personagem . O atalho é outro, mais disposto a seguir uma construção relativamente racional, com o relato sendo desenhado por fora, de maneira que o mecanismo de trabalho do ator seja o de mimetizar, às vezes mais, às vezes menos figurativamente, a ação. Perigo. O canto da sereia quando da representação de textos narrativos. Mas, resolvido no espetáculo com sensibilidade. De um modo geral o diretor soube evitar a tautologia e soube preservar o equilíbrio entre a expressão do estado e o comentário feito pela ação física, com acento e predileção por este último.
Henrique Ponzi é um ator de recursos. Foi bom vê-lo em um outro trabalho, em tudo diferente de Encruzilhada Hamlet, fantasia cênica que a Cia. do ator nu levantou sob a direção mais que autoral de João Denys. Ali, por força da dramaturgia de bordas fugidias, reinventada a cada réplica e em um fluxo de pensamento enlouquecido, foi possível ver na pele de Henrique a composição de um coveiro de língua hábil no andamento da fala, posta a correr em alta velocidade, e nas possibilidades do gesto dentro de um espaço mínimo de representação. Neste atual ele aparece mais repousado, por conta de um texto em que a reflexão é interiorizada, ainda que tome aquela direção proposta por Fittipaldi, a de um teatralismo que evita os grandes arroubos expressivos e se assenta em gestualidade ela mesma exibida como coisa estudada.
O “resfriamento” da emoção que a montagem propõe é uma resposta razoável a uma época em que a dramaticidade tem se produtificado de tal maneira que os artistas mais atentos, por uma questão de sobrevivência da autonomia artística, têm procurado se desvencilhar de todo chamado ao registro do melodrama que rege parte do teatro decalcado na teledramaturgia. Ou, de outro modo, têm experimentado exercícios de desmontagem ou re-estilização de gênero.
Esta seria uma frente de onde podemos tirar algumas questões úteis sobre o espetáculo. Em outra proponho, para tentar entender mais verticalmente a montagem, retomar agora pela contraface aquele aspecto da historicidade. Quando o pessoal da Cia. relata o seu processo de aproximação do texto e de criação do espetáculo destacando não os motivos (ou aqueles e-motivos) que os levaram às escolhas, mas os procedimentos construtivos (fazer melhor neste ou naquele espaço, usar este ou aquele recurso, estabelecer esta ou aquela relação com a platéia) isso nos ajuda a entender que o campo de interesse deles pactua o sentido da escolha às possibilidades da performance, talvez com ênfase nesta segunda. Por isso a angústia tão cara à narrativa só se firma no final, na sua auto-descrição, quando o personagem bate à porta que não abre. É que parece não haver mesmo, por princípio, urgência na expressão, e o espetáculo nos diz isto na sua forma.
Neste aspecto esta não quer ser apenas uma análise de valor, ainda que haja valoração subliminar. O que se afirma aqui é que as soluções encontradas talvez sejam as soluções possíveis para a época, levadas à cena de maneira sustentada do ponto de vista técnico: uma representação relativamente racional do conto e que pode sê-lo, tem espaço histórico para ser assimilada sem sustos desta maneira, neste momento.
Este crítico teve a felicidade de conviver um pouco com o Caio F. já quando o querido gaúcho de Santiago estava próximo a nos deixar. Eu adaptei a sua Dama da Noite para uma montagem em Belém e por conta disso tivemos uma aproximação. Uma vez eu disse a ele o quanto havia sido importante, para mim e uma geração de “pequenos monstros” (Os Dragões não conhecem o paraíso), silenciosos nos seus mundos secretos, a leitura das suas histórias. E ele respondeu que esse conto, Pequeno monstro, tinha o sentido solar que ele gostaria de ver traduzido na apropriação da sua obra, quase sempre tratada apenas com as tintas pesadas que também estão lá, mas que não alcançam tudo o que há nela. Tenho a pretensão de dizer que em minha opinião ele aprovaria este Fio invisível da minha cabeça, que tem a qualidade de nos colocar de volta, singela e doídamente, a meditar e a roer nossos ossos à frente de portas que queremos ver abertas. Mas, sem choro nem ranger de dentes. Neste sentido não me parece prostrante. Quem sabe daqui possamos então reclamar, à beira do mar aberto, por aquelas coisas e lugares desconhecidos e de nomes sonoros, como quem invoca a palavra mágica que tem poder para abrir as tais portas: “ Zanzibar, Bukula, Mensahib, Nikima, Jad-bal-ja”...
Kil Abreu nos demonstra através de seus escritos uma perfeita atualização dos expoentes de uma crítica teatral que prioriza, em primeiro plano, o Teatro e seus agentes históricos. O velor deste seminário está justamente aí: atualizar nossa visada teatral neste século XXI.JORGE BANDEIRA
ResponderExcluirHOJE É MEU DIA DE GRAÇA.
ResponderExcluirEntão aproveito para visitar a internet.
E como já passou tudo e muita gente não volta a ler as coisas, posso te fazer esse pedido quase em OFF:
se puder me fale mais de Caio, tá?
Micheloto, isso é papo para uma mesa de bar, bebericando alguma coisa... Estive junto ao velho Caio F. durante um tempo. Fiz uma entrevista longa para um jornal de Belém, que o Estadão re-publicou quando ele faleceu. Trocamos cartas, ele fez meu mapa astral (e fez uma leitura linda, gravada em uma fita k-7 que vezenquando revisito porque é muito revelador). Vamos falar, vamos falar, sim!
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