Kil Abreu
Senhora dos afogados, de meados dos anos 40, explica com objetividade por que Nelson Rodrigues foi alçado pela nossa crítica ao posto de dramaturgo central do modernismo brasileiro. É que a geração de Décio de Almeida Prado e Sábato Magaldi, que se notabilizaria por um embate ferrenho contra as velhas formas do teatro ligeiro vindas do século XIX, via no autor a possibilidade de síntese de um projeto estético para a cena que se firmaria, de fato, nas décadas seguintes. Se comparado à experiência européia tratava-se de um projeto de modernização conservadora. É que a crítica olhara para as nossas experiências vanguardistas valorando-as, ao menos em um primeiro momento, para baixo, mesmo que muitas delas tenham sido formalmente bem mais complexas no filtro da sociabilidade brasileira que as peças de Nelson (pensemos em Oswald Andrade). Basta ler, ainda hoje, as considerações de Barbara Heliodora sobre a montagem de O Rei da vela, pela Cia. dos atores, “criação de exceção” julgada teatralmente inviável. Oswald continua não cabendo nos escaninhos. Mas, há, claro, o fato de que Nelson tem obra mais lata e repercutiu oferecendo à cena a justa medida de assimilação esperada: reformista, ainda que não revolucionária.
Na montagem que a Cênica Cia de teatro prepara agora é o tema da Electra que rege a trama. Em uma república de assassinos (praticamente todos os personagens centrais), o fator de destino e determinação social é a tradição (trata-se de uma família de “trezentos anos” e de uma linhagem de mulheres supostamente puras e castas) e o elemento de danação é o apetite pelo incesto ou pela traição. Nele podemos ver o frescor da novidade moderna primeiro na tonalidade expressionista. Mais tarde isto se estenderia, na obra de Nelson, em outras versões brasileiras, em tema e linguagem, da tragédia, que aqui se aclimatou em um pacto de convivência negociado nos terrenos para nós acidentados do drama, envernizado com o sotaque local e sobre a base de argumentos e situações escandalosas, em uma arte de composição poética que, como sabemos, faz história.
Quanto à montagem sob a encenação de Erico José, as cenas que vimos alcançam até um pedaço do segundo ato e dizem de um processo em pleno andamento. Então as notas que seguem têm esta intenção também provisória, a partir do chão relativamente já firme que o grupo demarcou. Dado isto, não vamos entrar no mérito de questões específicas de desempenho e acabamento. Vou direto a uma ou duas questões gerais que talvez interessem.
A tomar pelas falas do grupo depois do ensaio, em que se disse sobre o processo de apropriação e abandono de alguns aspectos do treinamento, a Cênicas já intuiu a partir dos seus tateares na biomecânica meyerholdiana que os meios não podem ser os fins. Se por um lado a forma é ela mesma o conteúdo, por outro o processo formativo, os procedimentos de criação através dos quais a forma “se” forma, estes precisam ser alimentados por propósitos, intuições, diálogos com o mundo. É esta percepção da prática criativa já manifestada pela equipe - que não deve estar submetida ao encantamento provocado pela dramaturgia (a ponto de apenas ser reverente a ela), nem tampouco à afinação dos meios expressivos -, é esta percepção que, supomos, pede ainda mais espaço no trabalho de formalização do espetáculo.
Pelo relato do elenco parece claro o entendimento de que a técnica sozinha diria pouco. E dificilmente – a não ser que alcançasse um grau de virtuosismo extra-ordinário – deixaria de ser engolida por uma dramaturgia tão berrante e de contornos tão fortes quanto esta. Por isso, sem demérito ao ponto em que chegou a Cia, causa muito interesse o plano apresentado para o terceiro ato. Pelo que pudemos entender há ali uma promessa de autonomia poética maior, com o uso de elementos novos, segundo o que foi anunciado. O importante é que ao que parece não se trata de mero esteticismo. Esperemos que não. É que estão mesmo ali, no último quarto da ação, as razões que justificariam esta “virada” formal. É quando Misael, D. Eduarda, sua prole e vizinhança esquisitas assumem o despudor que se avoluma até o paroxismo, explodindo os desejos interditados na deleitosa aniquilação – coletiva - da norma em favor do desejo. Será difícil, portanto, manter o metro parnasiano que a encenação usa até aqui. Para benefício da verossimilhança a peça pede um descomedimento que também pode ser a senha para uma entrada mais autoral do grupo frente a Nelson, em uma conversa não reverente, mas pautada pela vontade de um diálogo verdadeiro entre artistas. E aí será útil pensar que em arte, assim como na vida, um diálogo franco não pode ter duas medidas de poder.
Salvo engano o espetáculo tende, então, a ser mais interessante quanto maior for a possibilidade de a Cênicas Cia. firmar sua voz própria. Há já um mais que razoável domínio dos meios, com a vigilância e o olhar rigoroso do encenador Erico José para a eficácia dos treinamentos que foram propostos. Isto não é pouco. Para além da montagem é coisa que sinaliza um tipo de procedimento de trabalho importante e parece que não muito usual no Recife. Mas, também não é tudo. Dominado o essencial do repertório é preciso que a morfologia vire sintaxe, que se articule em um discurso mais firme. Daí poderemos falar em linguagem. Não exatamente uma linguagem modelar, já escrita. Talvez uma linguagem nova, se necessário. E uma linguagem, a não ser que ela seja puro jogo formal – o que também seria legítimo, mas não parece ser este o caso - se institui em ponte com o mundo. Não apenas o mundo original e convidativo da peça, mas, sobretudo, a vida ordinária que estará pulsando, selvagem e atenta, no momento em que o pessoal da Cênicas pisar o palco para enfrentar Nelson.
Na percepção deste crítico o desafio não deveria dispensar, pois, a mediação do real e do presente. O discurso sobre a “universalidade” do texto, a “atemporalidade” poética da condição humana ou a sua carga “arquetípica” é algo que deve ficar para a platéia. Para o artista são clichês que não operacionalizam muita coisa. Desconfio que no fundo nem Antunes Filho precisou deles para as suas versões essencialistas e geniais, como em Nelson Rodrigues, o eterno retorno e Paraíso, Zona Norte. Estas coisas todas, se tomadas como princípio regente das tarefas de trabalho, de qualquer maneira não deveriam absolver a necessidade de leitura da peça, que de todo modo permanece lá. A questão é que aqui, como na criação em geral, será preciso antes de encontrar a esfinge inventar as perguntas que vão pautar aquele diálogo. Neste momento ele se apresenta nas bases de uma abordagem cuidadosa. Aguardemos para ver com quais inquietações ele se arredonda. Retomando o início, já sabemos que Nelson é o maior. Mas, o que interessa agora é saber sobre a maioridade da Cênicas Cia.
Senhora dos Afogados – Apontamentos críticos para um ensaio
Paulo Bio Toledo
Sobre ensaios
Vi um ensaio aberto de Katastrophè de Beckett, com Michel Lonsdale e era um tanto diferente. Creio que é bom bater um papo, curto, antes, sobre o que vai acontecer, o que vai se propôr, como todos iremos participar etc...
No Ensaio, vemos a coisa em pedaços. Claro que no dia será outra coisa. Essa talvez a grande preocupação do público e do crítico. Mas a gente não se diz todo dia que, cada dia, a peça é diferente? Nossos olhos fatiam constantemente todo aquele trabalho. Então não me parece que haja aí um grande problema.
Daí meu abraço fraterno a Wellington por começar essa prática por aqui.
Sobre peças fatiadas
Na Revista Théâtre Populaire, #44 de 1961, um artigo sobre o Living Theatre se apresentando em Paris, há o seguinte comentário sobre Many Lovers, de William Carlos Wilson: “...você entra e passa uns bons 15 minutos vendo os técnicos preparando o palco enquanto os atores repetem seu papel à meia voz e uma atriz passa a ferro sua roupa e o “autor” diretor não cessando de intervir ao longo da representação. Cenário reduzido ao mínimo e composto sobretudo com pedaços de paus...a luz toda aberta etc ...etc.... ”.
Bom, acho que o que vimos ontem foi o melhor do Living, não?
Então, é sobre essa peça tão moderna chamada “todos estamos no palco!” que eu deveria falar hoje. O papo fica um pouco mais político, um pouco menos lírico. Coisa, das Sing-an-sich, essencial para qualquer papo, já disse o Paulo no seu texto- que eu amei- sobre o Fio Invisível e que tentei comentar, uma vez que eu mesmo, cansado de falas acadêmicas, pedi licença aos leitores para me agarrar só sobre meu coração e não em minha razão.
Dar uma descansada lírica.
Sobre a importância de se encontrar amigos
(vide Aristóteles, em algum capítulo da Poética, sans blague):
Esse espetáculo comporta três ex-alunas e um ex-aluno. Permitam-me falar de amor hoje.
Os outros ainda vou amar, pode deixar...
A primeira fez um Ato Sem Palavras desinformado. De castigo teve que fazer Katastrophè e dessa vez brilhou e continua brilhando por aí, Bruna, a filha.
Vanessa, a mãe, fez Valsa # 6 comigo e Wellington. Criamos um Coro em Valsa e a colocamos no coro. Formou-se, persistiu e está fazendo Nelson lindamente.
Que bem não faz à gente o sair da universidade!
Lane, dessa vez Coro, foi minha rainha e de Ban num Obaldia.
No papel principal ou no fundo do palco ou na platéia, é e será sempre nossa rainha.
Todos sabem que eu odeio pessoalmente diretores. Acho que o século XIX e a primeira metade do XX já acabaram. Mas aceito um ou dois, como Wellington, Ban, Érico e eu. Dizer que Érico foi meu aluno só me enche do mais santo orgulho. Eu o acompanhei quando pude. Fui sim. Fui a salvador só para vê-lo fazer um magnífico trabalho de bufão. Eu o seguiria até o fim dos tempos. Azar para quem não é, como eu e meu novo amigo Jorge Bandeira, Ara Watasara. O que não sei dizer que significa em japonês, mas graças a deus NÃO é japonês, é nossa língua geral, Nhengatu, a língua do Brasil, queiram uns ou não queiram outros. Então, maninhos, eu tenho algumas reservas ao que vi ontem. Mas Érico e os meninos da companhia resolverão tudo a tempo.
O que significa Ara Watasara? Perguntem a esse segundo índio que está na platéia do Seminário. O primeiro é Polly minha doce e bela iracema. O outro é esse menino tranqüilo que está me espantando com seu conhecimento, passando de Samuel a Meyerhold sem fadiga. O Jorge Bandeira, meu irmão ara watasara. Ele é sábio não por que acumula conhecimentos e os vomita por sobre a espantada audiência, mas por que os passa. É isso o que ele entende por passantes, passeios, andarilhos.
Não deixem de ler dele: A fabulosa loja dos bichos, pela editora Valer.
Por que “perguntem ao Jorge”? Por que ele tem uma coluna aqui também e é só abrir os comentários e falar com ele. Ele vai gostar. E também por que, pelo menos eu, só estou escrevendo para meus colegas de sala. São tantos amigos novos que estou louco para me pavonear para eles. Quando eu quiser escrever para os que vão ao teatro, escreverei em jornais. Até por que, quem lê crítica em Recife, é mesmo apenas a classe teatral.
E essa é ainda uma afirmação muito temerária.
Pois talvez ainda não tenhamos tanta classe assim.
Sobre Nelson
Permitam-me, antes de mais nada, uma homenagem a minha ex-sogra. Foi uma das pessoas mais bondosas que conheci no Planeta Terra. E tenho certeza, lá em cima também. Que fazer, ela acreditava piamente que havia o “lá em cima”. Não vou ser eu quem vai tirar isso dela.
Quando aqui cheguei, depois do longo inverno de nossa desesperança chegar ao fim (pensávamos tolamente), entrei no apartamento de Mãezinha e por sobre o piano estava o retrato de Nelson:
Eu (admirado)- Mãezinha, você também gosta dos escritos dele?!!!
Mãezinha (admirada)- Mário nunca escreveu nada, meu filho!
Eu (prá lá de admirado)- É o pai dele? Mãezinha, me diga, essa é a foto do Maracanã?
Mãezinha (já achando que tinha casado mal a filha)- Não, Paulo, não. É só o Mario.
Mário Rodrigues nunca escrevera uma só linha em toda sua vida. Era exatamente a cara de Nelson, com papada, aquela cara meio bovina e tudo. E era irmão dela.
Aí fui pesquisar e descobri que eu acabara de entrar na família de Nelson. Os restos que andaram ficando por aqui. Que pouco sabia ou se interessava pelos que haviam partido. Para o Rio de Janeiro.
Eu nasci no Rio em 1944. Os italianos morriam de medo. Todos acreditavam que todos italianos eram Mussolinis. Era guerra. Mas todos crescemos rindo. O carioca é um povo dado a amenidades disse o Sábato e com ele todo a mineirada ruim- por que falsamente séria- que injustamente invadiu o Rio, capital do país, capitaneados pelo Capanema. Por isso os mineiros quando podem nos alfinetam, vide entrevista antiga, de título O Último Crítico, na Piauí: “Cariocas são dados a festas, ao riso fácil, sei lá...”
Nelson foi pro Rio. Que era alegre mesmo, na mais larga das acepções do termo. E lá aprendeu a rir? O que sei é que cada vez que vejo Nelson virar tragédia, solamente tragédia, eu fico pensando se quem fala Nelson não está pensando Sábato. Que são duas coisas inteiramente di-fe-ren-tes.
Eu vi Paulo rir na minha frente, numa daquelas tiradas que só o Nelson tem. “Eu sou sua única filha!” Como um mineiro conseguiria rir da necessidade de uma filha querer apagar da memória da família as outras irmãs, para ela poder ser a única filha? É sublime, é uma piada sublime! E nada a ver com psicanálise e freuds, por que nem Nelson nem ninguém no Rio nunca o havia lido e nem lerá.
E é isso que talvez eu tenha a dizer sobre Nelson. Morro de medo de fazer Nelson. Passei a temê-lo depois que ouvi dizer que sua obra se dividia em:
(a) peças míticas, (b) psicológicas, (c) de embreagem fácil, (d) epifânicas, (e) Etceteras...
Quem divide assim é o Jean Anouilh. A sua obra. E não a dos outros, gente fina que era. Ou o Borges, cabra de enorme humor negro que era, tanto que foi viver na Inglaterra.
Desculpem-me. Mas um senhor que exige de nossos frígidos canais de televisão, que haja uma cabra ao lado dele como único ser vivo a assistir seu programa, não tem a menor vocação para tragédia. Tragi-comédia talvez. Pois esse era o gênero recém-descoberto. Ele era um bufão. Ele era um bufão. Ele era um carioca da gema. “Carioca da gema do ovo”. Que “rebola, bola,diz que dá que dá que dá, diz que dá que dá na bola, na bola você não dá” (música infantil dos anos 50).
Não tentem transformá-lo em “mineiro”, por que não dá não dá não dá não dá.
Alguém aí tem dúvida que Érico irá nos espantar com seu Nelson? Ele também é um bufão, ele também é um bufão. No Ensaio - era um ensaio - ainda vi uma leve persistência de um tom que não me agrada, que penso continuar envenenando a obra de Nelson, esse legítimo pôrralouca. Se há um nome dos anos 60 atribuível a ele é esse. Ele não se nomeia reacionário? Então estou sendo bem bonzinho, não?
Por quê? Ele não “descreve” a vida suburbana. Ele a faz agir em palco.
Toda sua obra vem de sua escritura jornalística. Seu público leitor, senhores, era eu, meu pai e um bando de mequetrefes. Um povinho do qual saiu uma pessoa louca armada procurando quem havia escrito que ele era corno e sapecou os tiros no primeiro Rodrigues que encontrou: seu irmão.
O corno(possesso, sentindo dores no chifre)- Morre você mesmo, já que seu pai não está aqui!
Tem gente que pensa que isso é folhetim de Nelson. Isso é que é ser suburbano. A morte ali, estúpida. Seu irmão pagando pelo pai, que não tinha talvez tanta dívida para tanto sangue derramado. Isso é ou não é Nelson?
Então, para toda obra de Nelson, comentada por Sábato e seguida por outros, me desculpem, tô fora e não abro.
Ah meu deus os ignorantes!
Ignorantes(com muita ignorância)- Mas o que é que ele tem contra Sábato? Inveja? Raiva? Amor não respondido?
Michelotto(angelical, com olhos do gato de Shrek, querendo se passar por um tal de Nelson)- Parem de ser suburbanos, pelasenhoradosafogados!
Eu fui com Sábato ver pela décima terceira vez, da parte dele, A falecida , de Nelson, lá no Sesc Pompéia. Esse amor de gente – todo mundo o conhece assim- estava escrevendo sobre a obra de Antunes e via, revia, revia. É um dos maiores pesquisadores do Brasil. É um leitor esfaimado. Ô cara, quem sou eu para comentar essas coisas dele! O que digo é apenas que, às vezes, nossos critérios de julgamento nos parecem bons, os melhores - no caso de um pesquisador- mas a gente entra em descompasso com o tempo. Ou sei lá por quê! Sei que a vida copia o teatro: cada dia é diferente e às vezes fazemos tanta coisa nela que distraímos de algumas essenciais. O banal. O banal é sempre essencial, me disse o Borges, me disse Nelson. O grande amigo de Nelson quis torná-lo sério, homem de letras, igual a José de Alencar ou algum outro da Academia. Coisas que só se faz para um amigo. E que o amigo, Nelson, deve ter ficado quieto e aceitado, pois afinal só sobrara esse como único caminho para ser reconhecido em um país de merda, pseudo-literário na maioria da vezes, um Rio besta cheio de mineiros bestas e engordados por sopinhas de belas letras e por outras sinecuras mais, que só um Capanema pode lhe proporcionar. E olha, era um mineiro, um desses mineiros, quem pacientemente se debruçou com ele sobre sua obra e sobre inúmeras médias de café com leite das madrugadas cariocas nos anos 50 e 60, quem sabe sentados ao lado do Michelotto, o Sylvio, meu pai do Diário da Noite por que a noite sempre junta os jornalistas.
Como não aceitar um presente de grego desses?
É essa minha versão pessoal para o que leio de Nelson e meus amigos (queiram eles ou não) Paulo Mendes Campos, Décio de Almeida, Mariângela, Sábato e tantos alguns outros.
Por favor, se um dia eu tiver uma lápide, ponham nela:
Lápide( rosa marmórea, límpida, florida e das mais caras)-
Michelotto (no céu, já chorando com pena de si mesmo) - Eles me amavam, cacêta!!!
Por Jorge Bandeira*
Recife, 21 de agosto de 2010.
(Obs.: Edição coletiva do texto com Juliene Codognotto em operação semelhante aos processos de colaboração e edição de textos na revista Bacante – www.bacante.com.br)
0. Ontem, antes de começarmos a assistir Senhora dos Afogados, fomos avisados de que aquilo era um ensaio. Paradoxalmente, o ambiente sóbrio e simples do ensaio pode deflagrar elementos muito interessantes. No caso, a composição simplificada (luz geral, figurinos neutros, aquecimento aos olhos do público, etc.) coloca em evidência algo muitas vezes esquecido no teatro, a saber, sua característica de troca, razão e pensamento ao invés do deslumbre, efeitos, beleza e contemplação. No ensaio de Senhora dos Afogados, projeta-se ao primeiro plano a dramaturgia e as escolhas técnicas de encenação e interpretação e, consequentemente, a apreensão cognitiva das mesmas – justamente por assumir seus elementos de ‘ensaio’. (não é possível saber como será a peça quando pronta... Mas muito dessa ambientação simplificada e despida de ilusões faz bastante bem ao espetáculo. E ao teatro, diga-se de passagem)
1. O que primeiro ressalta do esboço apresentado é a concepção coral dos “Vizinhos”. Sua construção é um passo além ao próprio texto de Nelson Rodrigues, pois ao conjugar todas as vozes dos vizinhos numa única aglutinação coral, os vizinhos, invariavelmente, ganham características dialéticas, são contraditórios (afirmam e negam, subsequentemente) e tornam-se um duvidoso mestre de cerimônias público; a escolha consegue dar conta do aspecto épico das tragédias e eleva “os vizinhos” a um status de protagonismo, que, paradoxalmente, faz sublinhar a situação central do texto – como um moldura mítica (e pública) em torno do desdobramento privado na casa da família. Então, a dicotomia presente na obra de Nelson Rodrigues: casa/cais, vizinhos, prostitutas, fica muito bem evidenciada quando se fortalece o elo dos vizinhos.
2. No entanto, as escolhas de representação no desenvolvimento dos Drummond parecem colocar em risco essa proposição inicial. Isso porque a construção das personagens e as ênfases das cenas contêm um forte direcionamento dramático (no final do ensaio, na conversa com o grupo, um dos atores referiu-se ao “drama...” ao que foi prontamente corrigido por uma atriz, que disse “a tragédia”). Assim, as personagens protagonizam diálogos intersubjetivos e são direcionadas e determinadas por esses diálogos, bem como pelas relações estabelecidas. Todavia, na tragédia rodrigueana a situação não se deixa levar pelos diálogos... Há uma determinação moral e mítica, as coisas caminham como que levadas por um “fio invisível” já traçado pela moral e pela hipocrisia da sociedade. Tudo já está dado em Senhora dos Afogados... Os caixões preparam-se antes dos seus mortos... O mar chama os Drummond (embora o chamado seja o eufemismo de assassinato)... e os Vizinhos narram e comentam fatos e perguntam coisas que parecem já conhecer.
Mas as personagens, neste ensaio, parecem ser construídas com base numa motivação psicológica, o que cria situações irresolúveis e momentos esquizofrênicos. Por exemplo, o primeiro quadro da tragédia: Clarinha acabou de morrer no mar (tal qual Dora)... Não se sabe se suicídio, acidente ou mesmo assassinato. Mas mãe e filha discutem, entre outras coisas, o noivado de Moema; ao mesmo tempo Misael está num banquete para sua promoção a ministro; e os vizinhos, como corvos, passeiam ao redor. Tentar resolver este quadro de forma dramática faz com que as personagens percam seu caráter mítico, talvez alegórico e principalmente trágico.
Representar Moema dramaticamente redundaria nas chagas da crise do drama, pois ficaria rebaixada a apenas um espécime patológico dos seres humanos e não como símbolo de uma teia moralista, tragicamente hipócrita e apodrecida que alicerça nossa sociedade – segundo Nelson Rodrigues. Ou seja, os Drummond aparecem, quando representados desse modo “dramático” buscando a verdade de cada indivíduo, apenas como uma família de loucos, assassinos e maníacos – e Moema como a mentecapta de uma trama perversa. E não como o que de fato são para Nelson: representantes trágicos da corrupção e deturpação sociais hipocritamente escamoteados no moralismo (principalmente sexual).
3. Por enquanto parece isso, mas claro que ainda há metade da peça... Tudo pode ser diferente e o terceiro ato pode mudar absolutamente todas as relações esboçadas acima (ou não)... Portanto uma crítica de um ensaio é apenas o ensaio de uma crítica...
4. De qualquer maneira, há algo que chama ainda a atenção: as motivações para lidar com o material de Nelson Rodrigues. De acordo com o debate ao final, o grupo pareceu mais impulsionado em lidar com o aparato técnico de Meyerhold antes de ter alguma motivação objetiva na obra de Nelson Rodrigues. A priori, parece que a obra é apenas a justificativa para o processo criativo embasado pelos treinamentos meyerholdianos. A despeito do grupo crer que a obra seja “atual” e denuncie a hipocrisia da sociedade, parece carecer de algo mais concreto no ‘porque’ de lidar com essa obra (polêmica e controversa, mas jamais consensual ou “genial” por si mesma) nos dias de hoje.
Não por acaso, várias das perguntas, na conversa final, questionavam justamente este lugar. Pois, por enquanto, não estão delineadas claramente quais as relações que o grupo pretende traçar entre a peça e a nossa sociedade atual.
É fácil se conformar com um “rótulo” da genialidade de determinada obra ou autor. O difícil é compreender, criticar e transpor suposto gênio para a representação teatral em outro tempo histórico. Há de se ter cuidado para que a técnica mantenha-se sempre como instrumento e jamais como objeto do ato teatral.
Duda Martins
Grupos de teatro que permitem abrir seus processos de criação para o grande público merecem crédito por seu ato de coragem. Primeiro porque expor um material inacabado, com todos os seus defeitos e todos os seus avanços é uma prova de humildade no teatro. Depois, o público, que é a razão de ser desta arte, pode ter acesso à um desenvolvimento às vezes mais valioso que o próprio produto final.
Foi essa a sensação ao assistir o ensaio aberto da montagem da Cênicas Cia de Repertório para o nelsonrodrigueano Senhora dos Afogados. O Teatro Hermilo Borba Filho foi palco de um escancaramento saudável, que nos fez sentir mais cúmplices do teatro que o normal. Sem aparato de iluminação ou figurino, os atores da companhia estavam livres para serem atores (diante do público) e esse é um exercício importante.
Montar Senhora dos Afogados, no entanto, não é das tarefas mais fáceis, por uma série de fatores. O texto já foi alvo de pesquisa de diversos grupos teatrais no Brasil inteiro e a quantidade de olhares distintos sob a mesma obra é infinita. Como produções cinematográficas que se valem das mais mirabolantes abordagens para tratar do mesmo tema, é perigoso que o teatro brasileiro esteja dando voltas ao redor de Nelson Rodrigues. E poucos são aqueles que conseguem, enfim, mergulhar na sua obra.
“Um mar que não devolve os corpos e onde os mortos não boiam!.” Esse é Nelson Rodrigues em Senhora dos Afogados. A Cênicas Cia. de Repertório parece estar entendendo o recado. O estudo do texto feito pelo diretor Érico José, sob a ótica do teatro de Meyerhold não afasta a “sua” Senhora dos Afogados de Nelson e essa é a grande sacada. Assim como os movimentos afroritualísticos adotados por ele também não são maiores do que a obra. Um diretor sábio é aquele que está a serviço do autor. Érico emprestou seus conhecimentos a Nelson e o resultado disso ¬– ainda sem ser resultado – tem sido bom. Mesmo lançando mão da biomecância de Meyerhold, que parte do pressuposto de que, genericamente, o corpo do ator pode dizer mais do que o próprio texto, iluminação, figurino, ou o que quer que seja, neste caso, o recurso não se transforma na questão basilar.
A montagem também parece superar uma outra armadilha de Nelson que é o drama. O texto é trágico demasiado, mas o humor peculiarmente sarcástico tão característico do dramaturgo também está presente. O melodramático, então, é suavizado com a participação do coro de vizinhos – até agora, o melhor e do espetáculo. Antunes Filho disse uma vez: "Os personagens do coro são capachos, o brasileiro sufocado pela sociedade patriarcal, hipócrita. O coro não tem a nobreza, ele está se virando, não teve vez. Os vizinhos e as mulheres do cais são versões modernas das Erínias, deusas da vingança e do castigo, que nas tragédias gregas atormentavam os protagonistas”. Bingo! Antunes acertou e a despeito de braços quebrados, o coro da Cênicas também. Que venha a estreia! Ou será melhor outro ensaio aberto?
IDEM (Many Lovers)
mi-CHE-lotto
É extremamente vantajoso escrever sobre ensaios. Vira também ensaio. E a gente aproveita para escrever sobre, como algo nada muito ligado.Sobre ensaios
Vi um ensaio aberto de Katastrophè de Beckett, com Michel Lonsdale e era um tanto diferente. Creio que é bom bater um papo, curto, antes, sobre o que vai acontecer, o que vai se propôr, como todos iremos participar etc...
No Ensaio, vemos a coisa em pedaços. Claro que no dia será outra coisa. Essa talvez a grande preocupação do público e do crítico. Mas a gente não se diz todo dia que, cada dia, a peça é diferente? Nossos olhos fatiam constantemente todo aquele trabalho. Então não me parece que haja aí um grande problema.
Daí meu abraço fraterno a Wellington por começar essa prática por aqui.
Sobre peças fatiadas
Na Revista Théâtre Populaire, #44 de 1961, um artigo sobre o Living Theatre se apresentando em Paris, há o seguinte comentário sobre Many Lovers, de William Carlos Wilson: “...você entra e passa uns bons 15 minutos vendo os técnicos preparando o palco enquanto os atores repetem seu papel à meia voz e uma atriz passa a ferro sua roupa e o “autor” diretor não cessando de intervir ao longo da representação. Cenário reduzido ao mínimo e composto sobretudo com pedaços de paus...a luz toda aberta etc ...etc.... ”.
Bom, acho que o que vimos ontem foi o melhor do Living, não?
Então, é sobre essa peça tão moderna chamada “todos estamos no palco!” que eu deveria falar hoje. O papo fica um pouco mais político, um pouco menos lírico. Coisa, das Sing-an-sich, essencial para qualquer papo, já disse o Paulo no seu texto- que eu amei- sobre o Fio Invisível e que tentei comentar, uma vez que eu mesmo, cansado de falas acadêmicas, pedi licença aos leitores para me agarrar só sobre meu coração e não em minha razão.
Dar uma descansada lírica.
Sobre a importância de se encontrar amigos
(vide Aristóteles, em algum capítulo da Poética, sans blague):
Esse espetáculo comporta três ex-alunas e um ex-aluno. Permitam-me falar de amor hoje.
Os outros ainda vou amar, pode deixar...
A primeira fez um Ato Sem Palavras desinformado. De castigo teve que fazer Katastrophè e dessa vez brilhou e continua brilhando por aí, Bruna, a filha.
Vanessa, a mãe, fez Valsa # 6 comigo e Wellington. Criamos um Coro em Valsa e a colocamos no coro. Formou-se, persistiu e está fazendo Nelson lindamente.
Que bem não faz à gente o sair da universidade!
Lane, dessa vez Coro, foi minha rainha e de Ban num Obaldia.
No papel principal ou no fundo do palco ou na platéia, é e será sempre nossa rainha.
Todos sabem que eu odeio pessoalmente diretores. Acho que o século XIX e a primeira metade do XX já acabaram. Mas aceito um ou dois, como Wellington, Ban, Érico e eu. Dizer que Érico foi meu aluno só me enche do mais santo orgulho. Eu o acompanhei quando pude. Fui sim. Fui a salvador só para vê-lo fazer um magnífico trabalho de bufão. Eu o seguiria até o fim dos tempos. Azar para quem não é, como eu e meu novo amigo Jorge Bandeira, Ara Watasara. O que não sei dizer que significa em japonês, mas graças a deus NÃO é japonês, é nossa língua geral, Nhengatu, a língua do Brasil, queiram uns ou não queiram outros. Então, maninhos, eu tenho algumas reservas ao que vi ontem. Mas Érico e os meninos da companhia resolverão tudo a tempo.
O que significa Ara Watasara? Perguntem a esse segundo índio que está na platéia do Seminário. O primeiro é Polly minha doce e bela iracema. O outro é esse menino tranqüilo que está me espantando com seu conhecimento, passando de Samuel a Meyerhold sem fadiga. O Jorge Bandeira, meu irmão ara watasara. Ele é sábio não por que acumula conhecimentos e os vomita por sobre a espantada audiência, mas por que os passa. É isso o que ele entende por passantes, passeios, andarilhos.
Não deixem de ler dele: A fabulosa loja dos bichos, pela editora Valer.
Por que “perguntem ao Jorge”? Por que ele tem uma coluna aqui também e é só abrir os comentários e falar com ele. Ele vai gostar. E também por que, pelo menos eu, só estou escrevendo para meus colegas de sala. São tantos amigos novos que estou louco para me pavonear para eles. Quando eu quiser escrever para os que vão ao teatro, escreverei em jornais. Até por que, quem lê crítica em Recife, é mesmo apenas a classe teatral.
E essa é ainda uma afirmação muito temerária.
Pois talvez ainda não tenhamos tanta classe assim.
Sobre Nelson
Permitam-me, antes de mais nada, uma homenagem a minha ex-sogra. Foi uma das pessoas mais bondosas que conheci no Planeta Terra. E tenho certeza, lá em cima também. Que fazer, ela acreditava piamente que havia o “lá em cima”. Não vou ser eu quem vai tirar isso dela.
Quando aqui cheguei, depois do longo inverno de nossa desesperança chegar ao fim (pensávamos tolamente), entrei no apartamento de Mãezinha e por sobre o piano estava o retrato de Nelson:
Eu (admirado)- Mãezinha, você também gosta dos escritos dele?!!!
Mãezinha (admirada)- Mário nunca escreveu nada, meu filho!
Eu (prá lá de admirado)- É o pai dele? Mãezinha, me diga, essa é a foto do Maracanã?
Mãezinha (já achando que tinha casado mal a filha)- Não, Paulo, não. É só o Mario.
Mário Rodrigues nunca escrevera uma só linha em toda sua vida. Era exatamente a cara de Nelson, com papada, aquela cara meio bovina e tudo. E era irmão dela.
Aí fui pesquisar e descobri que eu acabara de entrar na família de Nelson. Os restos que andaram ficando por aqui. Que pouco sabia ou se interessava pelos que haviam partido. Para o Rio de Janeiro.
Eu nasci no Rio em 1944. Os italianos morriam de medo. Todos acreditavam que todos italianos eram Mussolinis. Era guerra. Mas todos crescemos rindo. O carioca é um povo dado a amenidades disse o Sábato e com ele todo a mineirada ruim- por que falsamente séria- que injustamente invadiu o Rio, capital do país, capitaneados pelo Capanema. Por isso os mineiros quando podem nos alfinetam, vide entrevista antiga, de título O Último Crítico, na Piauí: “Cariocas são dados a festas, ao riso fácil, sei lá...”
Nelson foi pro Rio. Que era alegre mesmo, na mais larga das acepções do termo. E lá aprendeu a rir? O que sei é que cada vez que vejo Nelson virar tragédia, solamente tragédia, eu fico pensando se quem fala Nelson não está pensando Sábato. Que são duas coisas inteiramente di-fe-ren-tes.
Eu vi Paulo rir na minha frente, numa daquelas tiradas que só o Nelson tem. “Eu sou sua única filha!” Como um mineiro conseguiria rir da necessidade de uma filha querer apagar da memória da família as outras irmãs, para ela poder ser a única filha? É sublime, é uma piada sublime! E nada a ver com psicanálise e freuds, por que nem Nelson nem ninguém no Rio nunca o havia lido e nem lerá.
E é isso que talvez eu tenha a dizer sobre Nelson. Morro de medo de fazer Nelson. Passei a temê-lo depois que ouvi dizer que sua obra se dividia em:
(a) peças míticas, (b) psicológicas, (c) de embreagem fácil, (d) epifânicas, (e) Etceteras...
Quem divide assim é o Jean Anouilh. A sua obra. E não a dos outros, gente fina que era. Ou o Borges, cabra de enorme humor negro que era, tanto que foi viver na Inglaterra.
Desculpem-me. Mas um senhor que exige de nossos frígidos canais de televisão, que haja uma cabra ao lado dele como único ser vivo a assistir seu programa, não tem a menor vocação para tragédia. Tragi-comédia talvez. Pois esse era o gênero recém-descoberto. Ele era um bufão. Ele era um bufão. Ele era um carioca da gema. “Carioca da gema do ovo”. Que “rebola, bola,diz que dá que dá que dá, diz que dá que dá na bola, na bola você não dá” (música infantil dos anos 50).
Não tentem transformá-lo em “mineiro”, por que não dá não dá não dá não dá.
Alguém aí tem dúvida que Érico irá nos espantar com seu Nelson? Ele também é um bufão, ele também é um bufão. No Ensaio - era um ensaio - ainda vi uma leve persistência de um tom que não me agrada, que penso continuar envenenando a obra de Nelson, esse legítimo pôrralouca. Se há um nome dos anos 60 atribuível a ele é esse. Ele não se nomeia reacionário? Então estou sendo bem bonzinho, não?
Por quê? Ele não “descreve” a vida suburbana. Ele a faz agir em palco.
Toda sua obra vem de sua escritura jornalística. Seu público leitor, senhores, era eu, meu pai e um bando de mequetrefes. Um povinho do qual saiu uma pessoa louca armada procurando quem havia escrito que ele era corno e sapecou os tiros no primeiro Rodrigues que encontrou: seu irmão.
O corno(possesso, sentindo dores no chifre)- Morre você mesmo, já que seu pai não está aqui!
Tem gente que pensa que isso é folhetim de Nelson. Isso é que é ser suburbano. A morte ali, estúpida. Seu irmão pagando pelo pai, que não tinha talvez tanta dívida para tanto sangue derramado. Isso é ou não é Nelson?
Então, para toda obra de Nelson, comentada por Sábato e seguida por outros, me desculpem, tô fora e não abro.
Ah meu deus os ignorantes!
Ignorantes(com muita ignorância)- Mas o que é que ele tem contra Sábato? Inveja? Raiva? Amor não respondido?
Michelotto(angelical, com olhos do gato de Shrek, querendo se passar por um tal de Nelson)- Parem de ser suburbanos, pelasenhoradosafogados!
Eu fui com Sábato ver pela décima terceira vez, da parte dele, A falecida , de Nelson, lá no Sesc Pompéia. Esse amor de gente – todo mundo o conhece assim- estava escrevendo sobre a obra de Antunes e via, revia, revia. É um dos maiores pesquisadores do Brasil. É um leitor esfaimado. Ô cara, quem sou eu para comentar essas coisas dele! O que digo é apenas que, às vezes, nossos critérios de julgamento nos parecem bons, os melhores - no caso de um pesquisador- mas a gente entra em descompasso com o tempo. Ou sei lá por quê! Sei que a vida copia o teatro: cada dia é diferente e às vezes fazemos tanta coisa nela que distraímos de algumas essenciais. O banal. O banal é sempre essencial, me disse o Borges, me disse Nelson. O grande amigo de Nelson quis torná-lo sério, homem de letras, igual a José de Alencar ou algum outro da Academia. Coisas que só se faz para um amigo. E que o amigo, Nelson, deve ter ficado quieto e aceitado, pois afinal só sobrara esse como único caminho para ser reconhecido em um país de merda, pseudo-literário na maioria da vezes, um Rio besta cheio de mineiros bestas e engordados por sopinhas de belas letras e por outras sinecuras mais, que só um Capanema pode lhe proporcionar. E olha, era um mineiro, um desses mineiros, quem pacientemente se debruçou com ele sobre sua obra e sobre inúmeras médias de café com leite das madrugadas cariocas nos anos 50 e 60, quem sabe sentados ao lado do Michelotto, o Sylvio, meu pai do Diário da Noite por que a noite sempre junta os jornalistas.
Como não aceitar um presente de grego desses?
É essa minha versão pessoal para o que leio de Nelson e meus amigos (queiram eles ou não) Paulo Mendes Campos, Décio de Almeida, Mariângela, Sábato e tantos alguns outros.
Por favor, se um dia eu tiver uma lápide, ponham nela:
Lápide( rosa marmórea, límpida, florida e das mais caras)-
Aqui jaz o Michelotto.
Foi por amor.
Foi por amor que ele escreveu sempre.
Mesmo que muitas vezes se tenha enganado redondamente.
The rest is silence.
Senhora dos Afogados pela Cênicas Cia de Repertório
Por Jorge Bandeira*
Gostaria de esclarecer que este crítico teatral do Amazonas escreve pela primeira vez sobre um trabalho em andamento, um work in process. Portanto, sinto-me na obrigação de superar-me e tentar, de forma sucinta, embarcar neste terreno perigoso de escrever algo sobre o que não pode ser, ou que seja apenas uma pálida imagem de um resultado final a ser levado à cena teatral de Pernambuco em setembro.
As coisas mudam com a força da maré. Mar. E sobre esse Mar que me escapa é que começo a tecer este texto, pois este elemento tão importante foi eclipsado pelo trágico de Senhora dos Afogados, e talvez, digo talvez com a certeza que os restante da carpintaria cênica aparecerá para resolver estes vazios, a colossal estrutura metálica no seu formato triangular para o espectados tenha contribuído para este “apagar” da atmosfera marítima, no texto de Nelson Rodrigues um dos constituintes fundamentais da trágica história de Misael Drumond e Moema.
Entendi perfeitamente a preocupação do elenco em demonstrar as etapas desta pesquisa que se alicerça sobre as teorias de Meyerhold e sua bio-mecânica, e acredito que este trabalho de contenção dos movimentos será ainda mais revitalizado, pois as marcas de entrada e saída estão fora deste compromisso de dialogar com o mestre russo. Questão de aprimorar tudo, e isto virá com a visualização total destes encadeamentos de cena, aqui mostrados em sua fase embrionária.
Trata-se de uma tragédia nos moldes clássicos, portanto, a leitura parcial deste primeiro ato(restam dois para a conclusão do texto de Nelson) permite apenas que o crítico aponte motes já resolvidos pela encenação. Um deles é o uso da estrutura metálica projetada com escadarias laterais e praticáveis em módulos que se sobrepoem como elementos incorporados à movimentação da cena e suas variações emocionais e de impacto ao espectador. Uma arquitetura de cena famosa no começo do século XX, via Gordon Craig, Appia e outros mestres do teatro. Até mesmo a clássica montagem de Vestido de Noiva referendou este legado.
O gigantismo da estrutura, insisto, não poderá desequilibrar a organicidade do espetáculo, caso contrário as personagens, em especial os elementos cruciais do coro de vizinhos e vizinhas, terá um tímido desempenho. E o coro desta Senhora dos Afogados da Cênicas Cia é o verdadeiro fio de ariadne para a compreensão estética, de linguagem, abraçada por esta Companhia Teatral.
A geometria tende a causar esta organicidade, este lapidar das retinas para as cenas marcadas, até aqui, neste ensaio aberto de 20/08/2010, dentro da Programação do Seminário Internacional de Crítica Teatral, funcionou a contento, mas esta mesma geometria pode levar aos intérpretes a uma acomodação da técnica da interpretação pelo comodismo tácito do geometrismo e marcas, mecanizando e enfraquecendo a trama trágica de Nelson. É apenas um ponto de reflexão, somente.
As máscaras, os conflitos familiares, este coro de vizinhos está na mesma transitoriedade de uma Yerma ou Bernarda Alba, e a correnteza deste mar de labdácidas arrasta tudo que encontra pela frente. As rezas e as danças circulares também estão neste nível do “aparecimento”. Falou-se no debate após este ensaio aberto(o segundo) que a pesquisa das manifestações afro-brasileiras foi realizada em dois terreiros. Talvez um comprometimento maior com estas entidades, muitas delas ligadas às forças do mar, seja o que falte para que a cena tenha um resultado mais plausível. Creio, somente.
Realizar com o corpo em sua totalidade, com o transe merecedor de autenticidade teatral, se isto é possível. Por isso as vozes dos personagens, nos momentos de alta tragicidade deste ato visto, sejam ecos apenas de uma possível desgraça, avassaladora, que deve jorrar sangue de todos os poros. Não estou aqui pretendendo que a pesquisa seja uma panacéia de defesas dos orixás, nada disso, mas ao entrar neste universo as trocas são necessárias, pois as energias também circulam de ambos os lados.
Atos extremados como os assassinatos tornam todos estes personagens vulcões em erupção, e uma interpretação contida, mesmo que na sua forma técnica perfeita, talvez “limpe” o vigor destas cenas em demasia. A punição e a culpa, nesta catarse que se faz necessária, não pode deixar de aparecer ao público, assim como este mar revolto, que em setembro deve demonstrar toda sua força.
*Crítico de arte, amazonense. Conselheiro de Cultura de Manaus, ator, diretor, dramaturgo, tradutor, poeta, coordenador do cine-clube Lippomusic . Historiador e especialista em História Social da Amazônia, História e Crítica da Arte(UFAM), Africanidades(UnB)
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