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A Renascer Produções Culturais organiza o Seminário Internacional de Crítica Teatral desde 2005 evento que reúne estudantes, profissionais e estudiosos de diferentes formações acadêmicas em um compartilhar de experiência, opinião e conhecimento dos mais diversos países, com o propósito maior de fazer avançar o desenvolvimento do discurso crítico sobre a criação teatral, em todo o mundo. O exercício da crítica de teatro como disciplina e a contribuição para o desenvolvimento das suas bases metodológicas constituem, assim, a prática do Seminário Internacional de Crítica Teatral, levada a cabo por críticos do teatro e uma gama de especialistas nas áreas de conhecimento que entrecruzam comunicação, história, filosofia, arte, literatura e teoria teatral, dentre outras. O Seminário Internacional de Crítica Teatral é um projeto que busca implementar no estado de Pernambuco um espaço permanente de debate sobre a estética teatral contemporânea. A edição 2011 tem como tema o Teatro fora dos Eixos. Todas as atividades desenvolvidas pelo seminário terão como base a discussão das poéticas cênicas que estão se propondo em produzir trabalhos que estão fora do cânone do teatro ocidental.

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Painel Crítico / Paloma Para Matar



Paloma para matar: Vigor radical, forma conservadora

Kil Abreu

Paloma para matar respira um entorno muito favorável. Tem a aderência da platéia e a aprovação de uma parte do pessoal de teatro – que reconhece no espetáculo, com razão, um sopro inquieto que talvez esteja mesmo faltando nos palcos da cidade. O elenco comandado por Lano de Lins está resguardado, por um lado, pelo sentimento de satisfação de quem vai ao teatro sequioso por boas gargalhadas e, por outro, pela sempre bem vinda percepção – mas nem sempre regular – de que o fazer teatro é ou pode ser motivo de uma sobrevivência viável, quando este é o projeto . Na linha de um espetáculo de entretenimento isto seria o fundamental. Vale o ingresso, pois. Mas isto, evidentemente, não é tudo.

Na montagem é claro que o travestimento do elenco é o recurso cômico fundamental e este mesmo já é parte da tradição cômica. Mas, não se trata só de uma história em versão travesti. O transformismo e os jogos com as identidades são o mote da dramaturgia e por vezes aparecem como tema, no primeiro plano da narrativa; por vezes surgem no segundo plano, mais acidentalmente, abastecendo o andamento da trama com o combustível das gags e outros achados humorísticos. Ainda mais que isso, as bonecas que movimentam o qüiproquó também têm parentesco em um DNA social reconhecível. São bichinhas “pão com ovo”, perfis a partir dos quais se pode olhar, de um lado, um ambiente determinado e, de outro, o desdobramento de um imaginário que amplia comicamente, na estratégia caricatural, os papéis, os desejos, as interdições e o reconhecimento crítico (sobretudo auto-irônico), tendo como eixos este dito lugar de classe em que elas se reconhecem (os sonhos de projeção, a partir dele) e as dobras da sexualidade.

Há na encenação uma teatralidade vital, que empresta elementos da farsa despudorada, em especial do gênero de humor que podemos ver nas intervenções de boate. Há ainda o arremate que caminha para o performático, no esforço de estreitar o espaço entre arte e vida, o momento da representação e o seu entorno. Esta intenção de quebrar as mediações entre o que está sendo representado e a platéia, em uma argumentação direta e de efeito certeiro, é elemento fundamental de comunicação da cena e ganha bom espaço, reconhecido generosamente pelo público.

Norma, ruptura

É sempre possível intuir alguma radicalidade poética nestas ações de travestimento, sejam elas momentâneas ou permanentes (quando dão o salto de qualidade e mudam de status): a sua opção decidida a favor do próprio desejo. Mesmo naqueles momentos em que o travestir-se está protegido pelo evento lúdico, como no carnaval, ou quando ganha expressão ampla na sua extensão mais corajosa, a assunção do transsexualismo, há este elemento de grande poeticidade e politicidade. Porque travestir-se ou mudar de sexo é algo para si, mas, também e fundamentalmente, algo para o outro.

Este argumento talvez sirva como apoio para discutir algumas das implicações de forma e sentido que o espetáculo faz ver. É que nele, ainda que esta força vital esteja suficientemente instalada - traduzida em lances cômicos de bom efeito, amarrada através da costura paródica e sustentada em ótimas performances para o gênero -, aquela radicalidade e, em certa medida, aquele frescor infantil (sem trocadilho) das coisas pensadas com o coração aparecem disciplinados em uma forma careta e em tudo conservadora. O espetáculo tem, então, esta contradição fundamental. A vitalidade inquieta e rebelde da sua presença funcionando a favor de uma estrutura teatral velha, inspirada no que há de mais carcomido no humor televisivo. Se olharmos com algum interesse nesta direção infelizmente só poderemos enxergar o pastiche de temas e experiências estas também já decalcadas de outras, desde o argumento do tipo “rapaz hetero, pai gay”, já explorado à exaustão sobretudo pelo cinema americano, até a marcação cênica televisiva (bastante frontalizada) e a cenografia quarto e sala do teatrão. No limite, não será exagero dizer que o espetáculo, de dentro do espírito iconoclasta e do humor deliberadamente esculhambado que o move, está atrás das grades do teatro inofensivo de classe média. As bichas estão enquadradas e, aí, não há novidade, é mais do mesmo.

Quando o diretor Lano de Lins nos disse, no encontro depois do espetáculo, que há uma preocupação grande com os palavrões porque há sempre crianças na platéia e cada vez mais velhinhos e etc, isto nos dá a medida do enquadramento. Isto é ilegítmo? Claro que não, quem dirá que sim? Como falava Brecht, em tempos confusos, primeiro a barriga, depois a moral. Já sabemos que o artista precisa pagar suas contas e que hoje só os grandes românticos e xiitas resistem a dissociação entre labuta artística e finanças. Mas, mesmo assim, para aqueles que ainda não hipotecaram os seus rins e neurônios nos balcões do mercado – creio que seja o caso dos artistas deste espetáculo, em que sobrevive um vigor invejável e que interessa muito – ainda assim, nem que seja por uma questão de princípio, será preciso reafirmar a necessidade dos lugares de invenção do teatro. E da desobediência também. Felizmente, ao contrário do que diz o encenador, sobrevive, sim, talvez a contragosto, uma malcriação produtiva, que por vezes lambe o grotesco e que é importante para este trabalho. Não seria bom enxugar isto. As criancinhas podem ir assistir a outro espetáculo, paciência, não é possível dar conta de tudo.

Esta não é uma fala contra nenhuma coordenada de gênero, da iconologia pop (o procedimento paródico, este é importantíssimo) ou muito menos quanto ao desejo do popular que o espetáculo pauta. É a favor da criação. E o princípio de criação precisa, pelo menos, implicar alguma dialética entre o que está posto e o que precisa ser inventado. Não se trata de militância de gênero – coisa que o espetáculo não quer ser; nem do exercício da novidade ou da diferença pela diferença, o que redunda por vezes em estéril formalismo e mata um tipo de energia fértil e de compromisso com a vida que artistas como os deste espetáculo parecem ter de sobra. Se trata, ao contrário, de pactuar, a partir do tema da transformação que é tão caro ao trabalho, uma extensão simbólica que alcance a própria forma do fazer.

Esta seria uma questão que interessa, sem perder as opções que já foram feitas, no campo da comédia e em torno dos temas que foram apontados? Talvez não. Mas, sem isto provavelmente a traquinagem sacana das garotas de Paloma para matar estará submetida ao espaço estreito de um teatro ele mesmo morto. De grande efeito, mas que não movimenta nada. É preciso dizer que uma arte altamente convencional e copiada de matrizes já gastas e testadas é também legítima, ainda que tenda a estar mais para a prática cultural, no sentido ampliado de procedimentos já inscritos, que para a arte propriamente dita, que implica ruptura. Mas, no limite, é legítima, tanto que provavelmente dá conta, em nosso caso, do teatro hegemônico no Brasil hoje. O problema é que o enquadramento no legitimado certamente está dispensando um tanto do talento que muitos artistas têm empenhado em cena, Brasil afora e em Recife também. E já houve por aqui o Vivencial Diversiones. O momento é outro e, a favor da lógica, é claro que não queremos experiências repetidas, mesmo porque a esta altura isto significaria fazer teatro igualmente morto, ou de museu. Mas, como nos dizia Heiner Muller, é preciso meditar junto aos nossos mortos, conversar com eles e saber o que eles têm a nos oferecer.

2 comentários:

  1. Tá na hora de eu me aposentar!
    Tá na hora de fazer como Duchamps e assinar em baixo como gesto inaugural.
    Às vêzes me parece que andamos pelas mesmas linhas.
    Provavelmente não, mas sinto-me confortável em poder dizer: agora, finalmente eu posso me calar.

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  2. Seu comentário estará visível depois de ser aprovado.
    PÔ, meu!!!!

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