Paulo Vieira
Barrela é o primeiro texto escrito por Plínio Marcos, em 1958, quando contava com cerca de vinte anos, pouco mais ou pouco menos, não importa, ainda em Santos, onde nasceu e se criou. Depois, Plínio, quando já era um sucesso nacional, o reescreveu e tentou montá-lo em 1968, mas foi proibido pela censura política. Ele somente conseguiu pôr Barrela em cena em 1980, numa montagem dirigida pelo próprio Plínio Marcos.
Barrela é um dos textos antológicos do maldito mais querido no teatro brasileiro. Uma situação dramática simples: homens encarcerados numa cela minúscula levam o tempo e o dia a se agredirem mutuamente, a se ameaçarem de morte e estupro, até quando um jovem de classe média, preso por brigar em um bar, acaba sendo jogado no meio da bandidagem e termina sendo estuprado, para logo em seguida um dos presos ser assassinado por outro que o jurara de morte.
Este texto provocou certa admiração em Patrícia Galvão, musa do modernismo de 1922, que, àquela altura, morava em Santos, onde mantinha uma coluna de crítica teatral. Patrícia enxergou no texto do jovem Plínio motivos condutores de um teatro que ainda não se sabia no Brasil o que isso fosse, e que ela chamava de “teatro filosófico”, mas que depois ficou mesmo conhecido como “teatro do absurdo”.
Barrela, na direção de Moisés Gonçalves, é um espetáculo que vai na exata direção do que, tenho certeza, o próprio Plínio Marcos gostaria, nada menos porque é um teatro sem concessões. É radical, duro, grosso, visceral, forte, macho, estúpido; fede a homem duro, grosso, visceral, forte, macho e estúpido. É a própria barrela, a água podre que se dá aos porcos.
Para fazer o espetáculo o grupo Trup foi conviver com os presos na penitenciária de Caruaru. Sentou no chão da cela com eles, conversou com eles, fumou com eles, comeu com eles, e somente não dormia na cadeia porque isto não é permitido. Um trabalho de prospecção do universo bandido que se traduz na sinceridade e na inteireza com que o elenco se mostra em cena. A recusa por um
teatro comum vem, talvez, da certeza de que num teatro o submundo de Barrela se perderia por completo. Pena que o grupo não o tenha apresentado numa cela de verdade, mas, de todo modo, o cenário reproduz uma cadeia infecta, auxiliado pelo fato de que o espetáculo está sendo apresentado no subsolo de uma antiga fábrica.
O espetáculo começa ainda na entrada da fábrica, quando os espectadores são tratados como se fossem visitantes em uma penitenciária. Os atores, vestidos de soldados, são rudes e grosseiros com o público, mandando-o fazer fila separada por gênero, homem de um lado, mulher de outro. Um grupo é conduzido de cada vez para dentro do teatro, e ainda antes de entrar, bolsas e corpos são revisados. Depois,quando se é conduzido para a plateia propriamente dita, vê-se que o espaço destinado ao espectador é minúsculo, o que reduz em muito o número de pessoas que o possam assistir a cada vez.
Chega a causar medo. E o impacto só não é maior por conta de dois detalhes que talvez devessem ser revistos: o primeiro é uma exposição de cartas e coisas que os atores colheram durante a permanência com os presos na penitenciária. O outro, é uma música em play back que não me parece adequada para aquele ambiente onde tudo é feio, menos a música, que tem o poder de desviar a atenção, aliviando a tensão que, a meu ver, já deveria estar posta, e esta me parece que seja a intenção do elenco, desde a entrada com os seus guardas grosseiros.
Mas como diria o Plínio Marcos, sempre tem um porém. E o porém deste espetáculo é exatamente a trilha sonora, porque dentro da cela o que se vê é o sonoplasta operando a música por um computador, algo que é visualmente estranho aquele ambiente. Na sequência do espetáculo a trilha sonora quebra a todo o momento a tensão que a ação estabelece. Por exemplo: na cena em que Tirica raspa a colher no chão para afiar a arma com a qual posteriormente matará o Portuga, o som do metal no chão já produz por si mesmo a sonoplastia da cena, mas que acaba abafada pelo som mecânico que vem do sonoplasta, quando me parece que bastava apenas a colher, e tudo estaria dito. Este talvez seja um espetáculo em que a trilha sonora deva ser os sons que os atores produzam: gemidos, gritos, arrotos, assoar de narizes, enfim, tudo aquilo que causa repulsa, tudo o que provoca mal-estar.
Existem textos que são tão perfeitos em sua arquitetura que retirar um ou outro elemento pode comprometer a intenção a que se destina. O louco, por exemplo, está sempre dizendo “enraba ele, enraba”, e isto é uma ameaça terrível naquele ambiente, algo para meter medo. Os cortes realizados no texto levaram boa parte da fala do louco, que, a meu ver, pode estar colocada em qualquer ponto da cena, à disposição do ator, para que seja sempre uma ameaça a mais.
Outra fala da maior importância: Bereco diz por algumas vezes “tenho nojo de puto”. No espetáculo lembro de apenas uma vez ter ouvido o ator dizer algo como
“não gosto de veado”. Percebam que a substituição tira a força da expressão de Bereco, que, aliás, é o único que não participa do estupro do garoto.
Por fim, o último porém: o espectador sentado no chão dentro da cena/cela. Eu fui um deles e tive a sensação de que apenas perdi boa parte da cena, porque embora eu estivesse dentro, estava por trás dos atores, assistindo ao espetáculo pelas suas costas. Eu creio que Barrela não deveria ter ninguém dentro do cenário, nem espectador nem sonoplasta, a bem da cena, para que esse absurdo filosófico realista de Plínio Marcos atinja ao público como uma porrada no estômago.
Mais um porém ainda: independente de tudo isto que a crítica aponta no sentido de dialogar com o elenco, o espetáculo é lindo, é forte, é envolvente.
Viva o Plínio, viva o teatro vivo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário