MÃE – IN LOCO
AUSÊNCIAS E GLACIARES.
*Jorge Bandeira
Aqui não temos um Brecht temático bradando por uma revolução que hoje sabemos fracassada. Vamos pela fragmentação, pelo degelo, derretimento deste Bertolt Brecht que assim foi diluído, porém pasmem, ampliado em seus delírios e sensações no descortinar deste século XXI. A Cia Cacos de Teatro coloca em cena a mãe e seus apetrechos afetivos, suas tramas e circularidades, nos lembra inclusive aqueles clowns que buscavam respostas que não vinham, que se tornam perigosas e nefastas.
Teatro das Sensações. Indelével. De imagens criadas num caldeirão de simbologias e aspectos da corporeidade. Lembranças me ocorrem das incontáveis performances e interferências que pululam no cyber universo, todas registradas e de livre acesso. Uma em especial merece ser citada: Lady Pain. Pesquisem e assistam. Não há similaridade com a pesquisa ora implementada pela cacos, mas estes momentos são muito século XXI, estão aqui do nosso lado.
Estes momentos perturbam o coro dos contentes. Teatro assim é para poucos, intelectuais, gente “cabeça”? Não sei responder, mas que é um bom exercício de reflexão da obra de Brecht não há dúvida. O ambiente é claustrofóbico, insano, e nos faz entrar nele com uma sofreguidão tão calculada que depois não sabemos mais o caminho de volta, o fio de Ariadne está perdido. Mesa, prato, talheres, caixa, carrinho de mão, um pássaro misterioso em seu automatismo, gelos espalhados pelo chão, gelo em saco, máscara monstruosa que deixa a performer/atriz com cara de cachorro-cavalo-égua. Ousaria definir como arquétipos que estão soltos e que se encontram quando nossos olhos cúmplices os avistam.
É como uma sinergia, um experimento, e isso requer estudo,laboratório, comprovando a força e a verdade nessa execução. Não pensem em facilidades, a atriz sofre, a coisa toda é real, mas eximiamente controlada. Não sei se necessita de um aparto médico de urgência, mas nisso vai uma dica legal para a Cia Cacos, que sabe lidar de forma peculiar com os limites físicos dos atuantes: um curso de primeiro socorros. Podem achar besteira, mas eu, que acompanho a feliz jornada da Cacos não é de hoje, tenho alertado para estes deslizes que algumas vezes os deuses do teatro impingem aos infratores do óbvio, e a Cacos é inimiga pública número um deste óbvio.
E nisso não se quer “inventar a roda”, como um dos integrantes comentou num chamado “open space”, mas inventar “uma verdade aprofundada da cena, a partir de seu fragmento”. È uma espécie de bloco que se parte e que depois se tenta reconstruir, assim vejo as cenas de Mãe – In Loco, desta mãe marionete que a cada compasso do choque de um metal de cozinha, e aqui a ideia de alimentar e regurgitar, de uma imaginária alimentação que não chega, e quando aparece vem postergar um caminho de salvação desta mãe sofrida, penalizada, dispersa, que recebe as agruras deste cruel destino, que vê o filho sob uma ótica de artificialidade, na perspicaz cena do boneco filho vídeo-criatura, personagem tão caro na inovação performática do século passado.
Esta mãe de Brecht provoca uma novíssima revolução, a revolução da dor, da consagração do tentar agüentar a pressão pelas perdas, e por isso seu sofrimento é como o grito dilacerante que tanto causou espanto na encenação do Berlinner Emsamble. Esse grito volta aqui, misturado aos processos urbanos terríveis que encontramos em diversas esquinas da insensibilidade.
O simbólico, no entanto, não segue a rigidez dos catecismos marxistas, pois aprofunda outra esfera dinâmica de sentir algo, de ver algo. A representação de Carol Santa Ana é comovente, e no final a atuante demonstra que realmente o jogo é lúdico, mas é uma brincadeira extremamente séria. Algo como “não tentem fazer em casa...” Atualidade que talvez poucos façam um link, mas que preciso comentar.
A Revolução fracassou? O gelo derrete e dificulta a vida da Mãe? O aquecimento global coloca em perigo a vida? Cada um decodifique o seu símbolo no seu IN LOCO. Por isso considero que a tendência natural dos projetos adultos da Cia Cacos de Teatro brevemente vão alcançar a exaustão... No sentido positivo de que quando este momento chegar, e está muito próximo disso, pela superação que cada trabalho determina aos atuantes, outro elemento surgirá, visto que cada experimento traz em seu bojo novos vislumbres, de contenção, de amplidão, de recuos necessários, não sei, e nem a Cacos, com toda sua minúcia, saberá.
As coisas acontecem neste ritmo, e o trabalho que tem nesse corpo sua majestade, tende a fazer sua própria releitura de seus condicionantes. Ainda sobre a interpretação da atuante e do interventor, destaco a tranqüilidade que angustia de Taciano Soares, que consegue ser cruel mantendo o dial numa tonalidade de terrível silêncio, com pausas preciosas, num tempo certo para a resposta da sofredora Mãe... Excelente no contraponto com as cenas mais acachapantes de Carol Santa Ana.
A bela e cruel cena dos santos petrificados no corpo nu da atuante é um momento de extrema grandeza estética, e a nudez pela Cacos é colocada a serviço da cena, e nunca o contrário. Neste mundo de taras obsessivas, eis que a Cacos dosa com perícia suas cenas mais arbitrárias, e nisso tudo há uma poética da cena, de uma cena vigorosa e translúcida, por mais que não estejamos acostumados a sentir prazer nos horrores da existência e da alma perdida do homem no socialismo. No capitalismo, em qualquer ismo, não há revanchismo, nada é panfletário. E nisso a Cia Cacos faz da ideia basilar de Brecht uma interessante Mãe Coragem, uma mãe que chora pelo derretimento das almas perdidas na loucura da contemporaneidade.
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