A rua e o palco
Paulo Vieira
Há uma sina terrível à qual está condenado o artista, a de apresentar a sua obra sob qualquer condição. Há um bordão de uma canção popular que diz que a plateia só deseja ser feliz. Portanto, nessa relação do artista com a plateia, resta para o artista submeter-se aos caprichos e desejos da plateia, e se o artista for um ator de teatro, ele o faz com deliciosa submissão, embora nem sempre tenha consciência de que ele também só é feliz se estiver submisso a esse desejo.
Ocorre-me pensar essas coisas depois que assisti a dois espetáculos na noite de ontem, 4 de setembro, durante o Seminário Internacional de Crítica Teatral, no Recife.
O primeiro, Do moço e bêbado Luna, do Grupo Teatro de Rua Loucos e Oprimidos Maciel, do Recife. E como diz o próprio nome do grupo, faz teatro de rua.
E o espetáculo em questão é, obviamente, de rua.
Eu tenho certos entraves pessoais em relação ao teatro de rua. Não o vejo como expressão da contemporaneidade, como tampouco vejo o palco à italiana como essa mesma expressão, até porque, pego o bordão do amigo Michelotto, se o palco à italiana é reminiscência do século XIX, a rua enquanto palco seria o quê? Expressão de que século? Certamente que o teatro existiu na rua bem antes de existir no palco à italiana. Acontece que quando existia na rua, as ruas eram menores e bem mais silenciosas do que o são na contemporaneidade. O pobre ator não precisava disputar a atenção e mais do que isso, os ouvidos dos espectadores, com barulho de toda a sorte, inclusive com sons mecânicos ligados em bom volume bem perto de onde estava o homem exercendo essa que é uma das mais antigas atividades do ser humano, a de representar para alguém, a tal plateia que só deseja ser feliz. Vejo o teatro de rua menos como uma opção estética radical e fora do eixo, digamos assim, e mais como um posicionamento político, não digo em sentido partidário (isso que no Brasil virou
valhacouto para velhacos e bandidos), mas no sentido de ir ao encontro da plateia, uma vez que ela cada vez mais vai menos ao teatro à italiana. E se isso acontece não é porque a plateia tenha se cansado desse formato, é talvez porque o teatro já não responda às expectativas de diversão da maioria.
À parte: sim, não esqueçamos disso jamais, por favor, teatro é diversão, a plateia só deseja ser feliz. Tudo o mais que sobre ele houver, teorias e modus operandi, são coisas nossas, de gente de teatro, gente que se dá importância mais do que realmente temos na memória, no gosto e nos corações dos espectadores.
OK, então é preciso ressignificar o teatro, então se vai à rua, repetindo-se inconscientemente o velho procedimento de que se Maomé não vai à montanha... O teatro vai à Maomé.
Acontece que na rua o teatro encontra uma praga do nosso tempo: o barulho.
Então, diante desta barreira, os atores se pegam a gritar, a gritar, a gritar cada vez mais alto para fazer com que os espectadores ouçam o que eles têm a dizer, e é nesse momento que entra o meu senão pessoal em relação ao formato rua. Em nome do texto - o texto é a mensagem – perde-se totalmente a interpretação, o pobre ator tentando ser feliz, gritando inutilmente para que a plateia seja feliz, ela que olha com certa indiferença o seu esforço para fazê-la feliz, até porque, não bastasse o barulho, cai a chuva e todos correm buscando abrigo e fica o ator, o resistente ator, esse dinossauro da estética, esse operário da ilusão, dançando na chuva sozinho como um bêbado e louco invocando os deuses do seu sagrado profano para que a nuvem passe, a plateia volte, e possa a sua função, enfim, se completar.
Tenho para mim que não dá para negar as tecnologias. Se o que precisa ser dito tem que ser dito com texto falado, então que se busque microfones, porque ator não é camelô, a mercadoria que ele tem a vender é a ilusão da felicidade que nascerá em uma rodinha mística no centro da praça, é o resgate de um poeta popular e bêbado que a cidade ignora, não interessa o que ele tem para vender, interessa o que ele tem para mostrar, o que eu, espectador mais ou menos ao acaso, quero ver e não vejo: um corpo actante. Não basta usar máscara, isso que já virou um signo comum em teatro de rua, para ser ator e ser completo, se falta o corpo expressivo, o corpo que fala, esse que diz que o teatro está presente, que o ator é a representação de um deus resgatado dos escombros da civilização, a voz da poesia, da inconsútil poesia que une o tempo e a memória, a memória e a sua revelação, a mensagem.
Teatro precisa de mensagem? Talvez teatro precise de tudo, é a mais carente das artes, mas eu tenho para mim que precisa, sobretudo, de ator, e este é um ser completo, um ser que é voz mas que também é corpo.
O importante é entender que em arte não há verdades, há escolhas. A rua ou o palco?
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