Trans- e Barrela, as aberturas da representação
Paulo Vieira
O open space realizado na tarde do sábado, durante o Seminário Internacional de Crítica Teatral, a Cia Cacos de Teatro, de Manaus, falou sobre o seu processo de criação de espetáculos, e de como o grupo se insere na produção teatral de Manaus. É sempre enriquecedor ouvir e trocar com um grupo as suas experiências e inquietações de toda a sorte, desde a natureza estética das suas criações até a sua forma de trabalho.
Para mim, fica sempre a sensação de que muda a cidade, a região e quando não o país, mas os contornos gerais do fazer teatral permanecem sempre, como se estivesse a reafirmar que teatro é assim mesmo, feito de dor e prazer, feito de amor e paixão, e dessa maneira nós nos constituímos uma tribo espalhada pelo mundo e pela vida, mas não perdida, não em êxodo para o desconhecido, mas em permanente êxtase pela criação da obra que se instala no corpo de cada ator.
E foi justamente de corpo que se falou na tarde do sábado. O corpo criativo. O corpo pensante, que determina o tempo e o espaço, que se faz arte, que se transfigura em imagens, que fala com gesto e cala com as palavras, que constrói a dramaturgia de imagens, e que persiste em um conceito que pouco se comenta do Umberto Eco, o de obra aberta, o corpo enquanto obra aberta.
Desde sempre o corpo é o lugar do proibido, mesmo nos tempos que correm em nosso país. O corpo é a dimensão do eu, do humano, do que vive e do que morre, do ser e do estar. Por esse caminho vai o teatro físico construindo abismos nos gostos ainda tão racionais, gosto esse que é sempre determinado pelas condições sociais e culturais nas quais o indivíduo está inserido, e isto passa muito menos por uma apreensão, compreensão ou sentimento estético, e muito mais por coisas alheias a beleza, tais como religião, família, educação e outras tantas coisas que vão moldando os nossos imaginários. Parece antigo esse papo? Mas quem disse que há algo de novo sob o sol que um dia iluminou os caminhos de Shakespeare? Nem na Inglaterra, tampouco em Manaus, Recife, Jampa e Sampa na boca do Rio.
Mas a verdade é que para além da obra os conceitos nos fascinam. Então precisamos nos colocar de acordo com os conceitos: pós-dramático ou não pós-dramático? Teatro físico ou teatro... Se não for físico será o quê? Intelectual? Racional? Popular? De elite?...
O teatro me parece que seja simplesmente a arte do eterno, do moderno e do antigo. O importante é entender e aceitar que tudo é como um rio, e seguir o fluxo do tempo, e deixar com que o tempo e a emoção determinem para o artista os caminhos de sua criação, sem muito se preocupar em ser moderno, ser bacana ou ser eterno, e entender que o eterno é moderno, e isto é o que justifica a permanência de Shakespeare e de Sófocles no tempo de Ariano Suassuna, de Bob Wilson, de Gerald Thomas; que a palavra não vibra sem o corpo e que o corpo não comunica sem a palavra, mesmo que ela esteja calada, transformada em imagem, em teatro físico simplesmente.
Essas discussões de fundo estético, ditas de outra maneira, obviamente, acabaram sendo ilustradas pelo espetáculo Trans-.
O que é Trans-? A resposta se encontra no programa da peça: do latim trans, elemento de formação de palavras que exprime a ideia de, além de, para além de,
através e para trás. Precisa explicar mais alguma coisa?
Uma atriz, Ana Paula Costa, pede ao público que lhe deixe fotografar a parte do corpo que não gosta. Algumas pessoas exibem as partes: barrigão de chopp, dente quebrado, o que seja, e ela o fotografa. Isso depois será exposto na tela de um computador. Depois espalha pelo chão bonecas e instrumentos cortantes. Pede ao público que se utilize desses instrumentos. Enquanto o público vai rasgando, furando, serrando, martelando as bonecas, ela vai desenhando em seu próprio corpo a parte que se está mutilando.
Trans- é uma performance na qual o corpo é o centro de observação. Pretende que seja algo que ponha em risco o corpo da própria atriz, que se utiliza das bonecas por não ter encontrado uma forma de fazer com que as pancadas, as facadas destinadas às bonecas fossem em seu próprio corpo, mas que não a machucassem, afinal o teatro é físico, não é de sacrifício, até porque, a se julgar pela sanha assassina do público sobre as bonecas, a cada espetáculo havia de ter outra atriz.
Pôr o corpo em risco parece que se constitui num desafio para o teatro físico.
Já vi espetáculos em que o ator corre e se lança contra paredes, ou outro em que o ator toma choques elétricos de verdade, outro em que o ator passa todo o espetáculo pendurado de cabeça para baixo, outro em que os atores representavam no alto, agarrados às paredes do teatro, enfim, o corpo-limite sendo entregue e exposto ao público para o ritual da trans-formação. Nesse caso, a atriz usa filtro de cozinha para cobrir o rosto e provocar no público a sensação de que estaria sufocando a respiração.
O problema é que a proximidade com o público o faz perceber rapidamente que ela deixou uma passagem de ar na boca, que por sua vez está amordaçada com um instrumento que lhe abre os lábios e expõe a dentadura, proporcionando não uma visão odontológica, mas cadavérica, reforçada, inclusive, por uma estrutura ortopédica que lhe enrijece o tronco.
Há um trabalho técnico de treinamento corporal no grupo, desenvolvido pelo diretor Dyego Monnzaho, e que talvez fosse interessante acrescentar ao trabalho da atriz, não como exibição de técnica, mas de criação de possibilidades de risco corporal, pois o que a atriz deseja me deixou a sensação de que aponta o caminho mas não o desenvolve, ou por medo, ou por timidez, ou por não estar o processo de construção da performance ainda inteiramente amadurecido.
O espetáculo, está escrito no programa, pretende abordar “a preocupação estética, os padrões ideais de beleza e suas consequências no corpo, nas relações humanas e na própria ideia do EU-indivíduo”. Pretende, enfim, discutir o belo e o feio. Mas o contraditório disto, o que está trans-posto em cena, é que o faz com uma atriz que diferente do feio que se deseja, é bela em sua nudez quando entrega o próprio corpo ao nosso olhar.
Depois do open space, seguimos para Caruaru para ver o espetáculo Barrela, texto do Plínio Marcos, com a direção de Moisés Gonçalves, realizada pelo grupo Trup As Crias de Mãe Júlia.
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