MEL
Para Gerrah Tenfuss
De Michelotto
Polly que é mulher e dançarina me disse três coisas legais:
O corpo inicial caminhando na reta bordando o fundo em direção à luz é apenas um corpo.
E isso é butô na sua maior descoberta. E que descoberta, esse “a penas”! (1)
Corpo descalço em sapatilha.
É um corpo debutante, que irá trocar a sapatilha pelo salto alto- como eu, Polly, e todas as meninas de minha terra. E vem de branco rendinha em nosso début, de profundo luto oriental. Essa morte que emana em tudo que é fisis, natureza, corpo físico, mulher mensal que pinga sangue, vida que se esvai e que vem. Heidegger insiste, com Heráclito, que esse corpo/ fisis ama se esconder, se movimentar em proteção animal, movimento que encantou (2) um Tatsumi Hijikata, um Kasuo Ohno, um Mishima, um Gerrah e levou de Heráclito o nome de s
Inicio e Fim
Um corpo inicia sua ocupação do espaço por entre a fumaça de seu próprio cigarro, ainda não nada, ainda não “narrativa tradicional”, ainda não início aristotélico. Apenas estar aqui, como diz Léo em sua semelhante entrada em cena, dessa vez com a fala de sua cena: “estamos ai, e aí?” Essa é a caminhada ereta, verticalizada, esfumaçada de todo ser ou de todo ator, ou de todo dançor. Um butoka não é dançarino nem bailarino: é dançor. Dane-se se acabei de inventar o termo.
A mundos novos, novas palavras.
Um corpo completa aquela ocupação do território, em abandono, rente ao chão, essa armadilha de toda dança, indo para lá, o mesmo ponto de origem de tudo, esse apenas INICIO (3).
Esse corpo não entra em lugar nenhum e nem vai para lugar nenhum. Ele é ESTAR, em sua condição e definição mínima: ele está aqui.
Esse corpo/ surgimento está “narrativamente” (4) rodeado de dois movimentos:
Primeiro movimento: surgimento até a luz e a largada do ser (andante).
Esse movimento não inicia narrativa como no ocidente, apenas surge (5) .
Segundo Movimento (6): re-surgimento: indo até a luz após a retomada em si do pequeno ser largado, agora embebido, agora bebido, sorvido em mel, autofagado. Andante, agora em rastro, deixando rastros, esse pequeno ser agora puramente bicho pronto para a nova captura. E o resto é silêncio, diria Shakespeare, que sabia perfeitamente que até agora essa passagem (7) toda foi sonora, dita, cantada. Toda Andante cantabile. A trilha sonora está sendo um duplo desse cantabile, antes passos, corpo ruído, agora voz quase reconhecível de mulher. Quase voz. Quase Verbo. Palavra que estava em outros Princípios. “Só somos hoje o que somos, graças aos nossos mortos.”- dizia Ohno. E Shakespeare repetiu e repetiu em Hamlet. Essa concepção zen-budista da transitoriedade, fragilidade das flores foi a que também Ophelia dançou. Dai permitam-me pirar!
Meio
Há um ritual - de passagem, diz-se no Ocidente; de transformação, diz-se no Oriente- desse corpo feminino que pervade (8) entre a imagem de seu pequeno ser largado ao fundo até o seu pequeno ser que esfrega cuidadosamente seus fetiches na água condensada, nos quais banha seu rosto.
O Butoh em cena é uma explosão muscular. Isso é a explosão de toda dança que corre pelo corpo. Isso é a dança: ESTAR aqui- essa imobilidade que a gravidade da Terra nos impinge. E ESTAR de passagem, essa ilusão de movimento, de troca de lugar, de velocidade fraca ou forte, que só a dança nos dá e onde a filosofia butoh nos ensinou a nos jogar (9).
E o caminho do Meio é esse.
Polly Ophelia, finalmente, disse também: “por um momento dá vontade de não ser mulher!”
E creio que foi isso que às vezes nomeamos “conservador”, essa velha casca conservadora, velha casca que Gerrah aqui abandona em palco, que a tira em cena, casca roupa que cobre e cobriu com um manto de palavras, ó Aragon, esse corpo de mulher, ah meu deus! Gerrah abandona tudo lá em palco bem nas sombras, resto, memórias, corpo palimpsesto raspado e re-escrito em luz 3D para a tentativa da última caminhada, horizontal, larvar, para lugar nenhum, que é esse o nome de todas utopias que nos revestem.
Constelação imaginal esse é nome genérico que guardo para esse tipo de escritura de Gerrah (10). Escritura com imagens do próprio corpo e que tento repetir aqui com esse corpo de letras (11). Constelação imaginal. Ah meu Barthes. Isso é pós-contemporaneidade pura!
O nome errado que dão por aí é “pós-dramático...” mas o pós-dramático dissolveu-se nas brumas do século passado, por mais instigante que tenha sido a cena do século passado.
Precisamos de um novo nome e eu já o cunhei na virada do século XX.
Então, já que chegamos ao XX, fui (12).
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(1) A PENAS é separado mesmo, ô redação, não me juntem não... Sabe, “pena, dor, morte, perda, transformação, transitoriedade”. Pô, entendeu finalmente!
(2) Encantar, segundo o Aurélio: botou num canto. Canto: esquina & ode. Nessa Odisséia quem vaga pelo seu corpo é Penélope, a reclusa mulher que nos precedeu na história. Nós do DIG estamos preparando Molly Bloom, a Penélope de Joyce e agradecemos a Gerrah todas as suas maravilhosas descobertas numa escavação sem fim de um corpo. E talvez o feminino. A luz a gente já tinha. Você a turn on.
(3) Vou encher-lhes o saco, mas Samuel, o Grandioso, inicia Koá-ú exatamente como Léo, em E se fosse você, exatamente como Ophelia, exatamente como esse menino Gerrah: “INICIO!”. (Entrar no espaço, na 1ª pessoa do singular). Trabalha-se uma extensão-mover-se é extender-se- entre a qual, como uma cunha, se insere um corpo palavra que se narra (mitos). Uma história que nos cobre e que vamos repelindo. (Re-pelir: tirando sua pele, descascando. Serpenteando).
(4) Narrativa aqui posta em grego de Aristóteles: mito/ s.
(5) O curioso é dizermos que essa narrativa assim está na raiz de nosso pensamento e literatura ocidental, quando NÃO está. Heidegger explica que na raiz está o SURGIR da s/natureza em direção ao ser.
(6) Segundo movimento que é apenas o mesmo, inicial e eternamente contínuo, mas foi cortado por uma lupa, uma explosão dele, um aumento visual desse descascar-se (vegetal), desse trocar de pele (animal). A palavra é meta-morfose: o que está além desta forma aqui, desse estado aqui. Nome, aliás, do grupo de teatro mais amável, mais lindo, mais doce, mais palco-como-terra-que-habitamos que já encontrei: os meninos lá da Amazônia.
(7) Passagem é páscoa, narrativa judaico- ocidental de ressurgimento, dizia Frederico Stein, meu professor de exegese.
(8) Pervade, segundo Aurélio: pelos vades da língua: evade, vau, vulva, vadiar, vaivem.
(9) Se jogar, segundo Aurélio: não preciso explicar o que significa no Ocidente a palavra risco. Significa, risco primordial, arranhão, rabisco, grafia que está escrita nas sociedades ágrafas em todos os corpos tatuados. E, em memória dos mortos, nos tatuados da nossa também. Quem disse foi Clastres. O meu amigo Pierre.
(10) A nossa versão de MEL de Gerrah está em CIDADELA, nosso butô de Saint-Éxupéry. Queria muito quem vissem e nos ajudassem a continuar construindo.
(11) Letra tem corpo 1, 2, 3 etc em linotipia. Em Barthes, é roupa, tecido, o que cobre, é coisa que se esconde, é sapatilha, ponta, salto, é ruído das águas das águas das águas desse rio que nunca é o mesmo, que nunca é o mesmo, que nunca é o mesmo e que nunca é o mesmo.
(12) Pô Léo, ontem no E SE FOSSE VOCÊ etc............ ...... ...... ..era eu, cara!
Cara, era eu cara, o cara que te passou a cabaça na rodinha, cara! Quando me passaram, vixe, como gostei!!!! Agora, bro, pô, que ressaca amanhecer com 3 rins!
Em tempo: Michelotto, as citações em greo não saíram, as fontes limitadas do blog não reconhecem. Então saiu uns quadradinhos, rsrsrs. Se tiver uma sugestão manda aí que eu edito.
ResponderExcluirRoberto Carlos
Preciso registrar neste espaço, minha eufórica satisfação em ler este artigo, a partir da experiência proposta por Gerrah, a mesma que pude acompanhar no Breves Cenas, em Manaus. A pesquisa, as imagens e sensações promovidas, estão também sendo experimentadas em um Exercício cênico, proposto por mim, ainda em fase inicial, talvez agora e sempre, já que a "pós-contemporaneidade" nos apresenta um buraco (como sugere Roberto Alvim) onde o fim, legitimado por questões respondidas, nunca chegue, nem tampouco exista.
ResponderExcluirMuitíssimo obrigado. Aos amigos de Recife, parabéns pelo Seminário e por esse intercâmbio com Manaus. Abraço.
segue o blog do exercício: http://www.processonatimorto.blogspot.com/
Dimas Mendonça
1-e levou de Heráclito o nome de fisis kriptestai fileiv- : a natureza ama esconder-se.
ResponderExcluir2- nota 4: em grego de Aristóteles: mito/ Mitos.
só para lembrar que tudo que chamamos Mitologia, com uma cara assim de mistério e sagrado na verdade para os grergos era apenas narrativa. Qualquer historinha era Mito heheheh.
perdaão: o N grego se escreve como um V então , distraí-me e escrevi: fileiv. CLARO que não é , é filein
ResponderExcluirobrigado pela palavras Dimas. Esse trabalho de Gerrah me deixou ensandecido. Pelo que você explica estás numa mesma vibe. Eu amo, adoro e quero ver teu trabalho. Obriga esses caras a te trazerem aqui, ok?
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