Márcio Braz
Palavras Chave: Mãe in loco, corpo,Trans-, gelo e facebook.
A apresentação das performances Trans- e Mãe in loco na cidade do Recife (PE), nos últimos dias 03 e 04 respectivamente, nos leva a uma discussão interessante cujos focos de debate nos direcionam para dois aspectos. O primeiro diz respeito à própria formação do teatro amazonense e os caminhos que descambam para uma quase verticalização no pensamento objetivo em relação ao fazer teatral na cidade de Manaus; e o segundo, como veio conceitual em torno do chamado “teatro pós-dramático”, no qual a companhia já nos adverte sobre suas intenções: não se trata de criar uma grife e muito menos de ter como exclusividade e fio condutor de suas encenações o pós-dramático ou as teatralidades híbridas, ou o teatro pós-contemporâneo ou qualquer nome que queiram dar para estas manifestações que não encontram limites e questionam os conceitos estabelecidos, mas sim, de pensar o humano dentro de novas perspectivas e linguagens.
Nos últimos 14 anos, o Amazonas estabeleceu uma políticia cultural sem precedentes na história com a criação de várias instâncias estatais responsáveis pela difusão, gestão, fomento e produção de boa parte do movimento artístico na cidade. O que torna este fato um ponto de análise é, exatamente, o modo como isto reverberou no processo criativo dos artistas de teatro em Manaus. Não seria apressado dizer que o número de produções teatrais praticamente dobrou nos últimos anos bem como o volume de verbas aplicados é bastante considerável, mas é possível perceber um descompasso entre o aumento quantitativo no quadro geral de produções teatrais e o olhar crítico sobre estas produções de modo a estabelecer critérios, identificar ações, processos, conteúdos e/ou mesmo indicação de metas para planejamentos futuros.
Por um lado há quem diga que a própria política cultural do Estado - com a oferta de espetáculos gratuitos à população mediante pagamento de cachês - é responsável pelo círculo vicioso e, porque não dizer, corrupto em que muitos grupos, companhias e artistas se deixaram levar. O financeiro acabou subjugando o cultural, a infra-estrutura dominando a superestrutura e o arrivismo aniquilando o processo criativo. Acomodados em nossas redes de tucum, nós artistas perdemos o foco de visão, a autoanálise e a generosidade para com o outro e o “Outro”; pouco nos vemos, ou mesmo refletimos sobre nossas conjunturas.
De modo algum pretendo acusar o Estado (leia-se aqui, poder público, órgãos representativos da sociedade brasileira), embora haja uma contribuição significativa neste sentido. Mas sim e nós, artistas, pobres miseráveis, presos em nossa torre de marfim como arquétipos (por que não?) da relação do não contraceno, do plano sem contraplano, do pas de deux sem o partiner.
É justamente sobre tudo isso que Carol Santa Ana pretendeu provocar quando de sua apresentação no espaço Muda, localizado no simpático bairro de Santo Amaro, em Recife (PE). “Mãe in loco” foi apresentada numa sala plana, rodeada por sofás e cadeiras e, neste ambiente, Santa Ana nos recebe sob quilos e quilos de gelo repousados, por sua vez, sobre uma lona azul em formato quadrangular. Ainda com ela, um carrinho de compras coberto de quinquilharias; e do lado de fora deste gelado ambiente, uma mesa com cadeira onde Taciano Soares promove suas intervenções.
Baseado em “Mãe Coragem e seus filhos” do filósofo e dramaturgo alemão Bertolt Brecht, “Mãe in loco” surpreende pelo impacto neste quase monólogo da Cia. Cacos de Teatro. A personagem interpretada por Carol (chamemos de Mãe) é o reflexo do mundo moderno onde cada vez mais se encurtam os diálogos, a incomunicabilidade torna-se presente, os olhares não mais se entrecruzam, e as relações sociais são feitas por sites de relacionamento da internet como o facebook. São corações gelados, frios, nesta guerra da não-relação e do não-afeto onde a Mãe-terra reflete e lamenta pela sorte de seus filhos glaciais.
O monólogo é a forma ideal desta performance que busca discutir o vazio em nosso cotidiano. A força promovida pela solidão no palco sem quaisquer indícios de relacionameto – seja ator-plateia, personagem-personagem – daria um choque verossímel a proposta empreendida pela Companhia. No entanto, a participação de Taciano Soares como um interventor neste (já disse!) quase monólogo, diminuiu o impacto da proposta, cujas intervenções, neste sentido, poderiam ser dispensadas. Assim como também consideramos dispensáveis toda tentativa de relação com o Outro, a saber: cabeça fora do espaço, saída de cena diante do espectador, exibição de adereços e colagens no corpo para o espectador de forma direta e trivial.
Em Trans-, outra performance da Cia, desta vez interpretada por Ana Paula Costa, a desconstrução do corpo é levada à cabo e como nos afirma o antropólogo Claude Lévi-Strauss “o homem soube fazer do seu corpo um produto de suas técnicas e representações”. A intérprete cria códigos corporais e todo um repertório de gestos codificados em vista de uma eficácia prática de modo a constituir-se num elo de comunicação com o espectador cujo objetivo claro é provocar uma discussão sobre o corpo construído socialmente e todo o universo de significações que moldam a vida cotidiana dos indivíduos, afinal, conforme salienta David Le Breton em A Sociologia do Corpo, “ não há nada de natural no gesto ou na sensação”.
Mas ao mesmo tempo em que a comunicação é gerada, percorre em vistas da plateia um computador contendo fotografias tiradas em apresentações anteriores e outras reveladas naquele momento. Pelo que se percebe no início da cena onde a intérprete paga R$ 1,00 para que fossem fotografadas partes do corpo que o indivíduo fotografado se sente insatisfeito, imagens de outras pessoas fotografadas e que não estão presentes são postas à vista pela plateia. Daí se discute uma relação ética no sentido de que o jogo pretendido na performance diz respeito apenas ao presente ato e não a outros, logo, a autorização dada foi só para aquela brincadeira naquele momento e não em outro.
Será que o pós-dramático trabalha dentro dos limites do politicamente correto? Ou não? Sabemos de inúmeras manifestações folclóricas como a quadrilha e ciranda, por exemplo, ou mesmo espetáculos de stand-up comedy onde as brincadeiras em torno da deficiência do indivíduo ou piadas de cunho moral e racistas são aceitos dentro destes limites e não geram qualquer sentimento de desaprovação pela plateia. É como se o código construído dentro destas linguagens já fosse absorvido, culturalmente, pela plateia. Mas onde pretendo chegar é na presença do jogo, que na verdade não há. A brincadeira de se comprar uma foto é forte quando o idivíduo fotografado está presente. Isso chama a atenção de outros da plateia como do próprio espectador - modelo. Quando é colocado fotografias de “anônimos” parece que o objetivo do jogo fica preso numa ilustração e não no uso de um adereço imagético, extraído em tempo presente, criado como elemento do jogo, brincadeira e surpresa. O anônimo fotografado foi excluído da brincadeira entre a intérprete e a plateia e serviu apenas como papel de parede para o exercício poético pretendido na performer.
O que une a proposta das duas performances não é a força da imagem e sim o que a imagem sugere como elemento codificador; é a nossa visão de sangue, de corpo, de infância, de mãe e de criança que é desconstruída, repensada e tensionada. Podemos dizer que em “Mãe in loco” e “ Trans-“ estamos diante de um teatro das sensações onde aquilo que é visto imediatamnte é transposto para o plano das sensações.
A Cia. Cacos de Teatro, criada há um pouco mais de três anos, vem desenvolvendo projetos salutares no campo das artes cênicas em Manaus. Espero que a energia despendida pelo grupo ressoe no coração de nossos companheiros da terra, afim de construirmos um teatro forte, criativo e “engajado”, e não um exercício estatístico e apressado para preencher curriculum e ser a gracinha dos editais.
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