LLORANDO SIN SANGRE
Por Dyego Albuck
Todas as coisas têm o seu mistério, e a poesia é o mistério de todas as coisas.
Federico Garcia Lorca
Riquezas de expressões artísticas, alquimia de elementos é o premiado espetáculo do 6º Festival de Teatro do Amazonas, Bodas de Sangue do autor espanhol Federico Garcia Lorca. A incumbência da montagem é creditada ao grupo amazonense Arte & Fato que traz a Recife um espetáculo em que se entrelaçam dança, poesia, música e artes plásticas, criando assim uma estética bem peculiar ao espetáculo.
Com doze anos de estrada, o grupo nasce de uma pesquisa voltada a etnia indígena Yanomane onde costumam pesquisar a cultura popular da sua região. Integram-se ao grupo artistas de diferentes formações, tais como: iluminadores, musicistas, preparadores corporais o que enriquece as investigações e as montagens dos seus espetáculos.
Submersos no universo folclórico de Andaluzia, Douglas Rodrigues, diretor do espetáculo, opta pela utilização de recursos cênicos que referenciam a finalidade proposta por Lorca, visto que a dramaturgia lorquiana é baseada fortemente em declamações de poemas em que a música se reflete no ritmo e na sonoridade de sua obra poética, onde os cenários retratam fortemente a Espanha de 1933.
Quando adentramos no espaço teatral, somos surpreendidos por um conjunto de músicos que entoam canções que ambientam e caracterizam o universo rural espanhol. É por som de castanholas que ficamos convidados a comungar e conhecer um pouco mais da cultura da Espanha. Ao abrir as cortinas já vemos os atores dançando o flamenco, dança associada à Andaluzia e símbolo da cultura espanhola. A dança constrói um ritual que une poesia e música, estas que regerão todo o espetáculo. Mesmo com uma pesquisa aprofundada do assunto, visto que Lorca era um admirador fascinado pelo flamenco, os atores se mostram acanhados nas execuções dos passos, que ainda com palmas e sapateado, não conseguem acompanhar o ritmo das músicas entoadas e, mesmo com demonstrações corporais expressivas, não traduzem a força do povo espanhol.
Na escolha das trilhas sonoras nota-se uma preocupação e um respeito ao lirismo e a poesia do texto, o que recria elementos favoráveis à compreensão e a fluidez da peça, oferecendo ao espectador um clima denso e sensível à poética do autor. É um pecado não mencionar a preparação vocal dos atores que no canto, mesmo em solo ou em coros, percebe-se uma técnica que executa bem a harmonia da canção. Vemos também uma criação de sonoplastia rica e estilizada, mas que se excede, algumas vezes, como na cansativa música de ninar que trunca o andamento do espetáculo.
Assim como o texto, o luto rege todo o espetáculo, isso é demonstrado na cenografia que provém de uma rica expressividade, no que se encontram apenas um grande véu transparente de cor preto pendurado em forma de painel e apenas dois bancos que demarcam a mudança de quadros indicando um ar intimista à proposta da encenação, em que o foco central se pauta na interpretação.
Se a sonoplastia e a cenografia rege com maestria o espetáculo, o mesmo não acontece com a iluminação, pois esta não consegue alçar voos tão longos quanto os outros dois elementos. A criação da luz denotava ambientes confusos, visto que não caracterizava bem as mudanças de quadros e atos. Além disso, se perdia em relação aos focos, ora momentos necessitavam de um foco maior na personagem, outrora o foco se fazia desnecessário, o que confundia e dispersava o olhar do espectador. A concepção de luz prejudicou, um pouco, o realce dos outros elementos cênicos como, por exemplo, a indumentária que por vezes ficou apagada em alguns momentos do espetáculo.
Outro grande destaque é a concepção de figurino, uma vez que, cada caracterização remete ao modo espanhol de se vestir. Cada roupa era repleta de fortes significados, que revelavam muito à época dos personagens. As mulheres eram deusas enfeitadas pelos olivais, com vestidos que variava entre o preto, o branco, o creme, o azul que mostravam a beleza, a elegância e a sensualidade daquelas mulheres. Exceto a roupa da personagem Criada que destoa das demais personagens, pois sua caracterização se assemelha mais às vestimentas de herança africana. A sensibilidade da escolha do vestido da noiva é incomparável, pois ganha uma beleza própria quando o vestido branco aparece todo ensanguentado.
O figurino dos homens varia entre roupas sociais com tons preto, branco e vermelho. Um deles se trajava como um cigano, entretanto a sua participação dentro da peça se dá de forma gratuita, já que suas entradas servem apenas para mudanças de cenário, o que poderia ser feito pelos atores. Salienta-se também quanto ao figurino, à escolha do cachecol azul do pai, pois não traz unidade as cores e a textura das outras personagens. Vale dizer que a concepção de figurino de cada personagem reproduzia um estado de espírito o que levava ao público a identificação imediata com o simbolismo de cada papel em uma linguagem que confluía com os outros elementos visuais.
Não é de hoje que muitas concepções de figurino se utilizam dos usos clichês visuais para facilitar a identificação no palco, criando assim uma indicação automática do público em relação aos estereótipos apresentados. Muitas vezes, não é o figurino que se detém desse recurso, mas o próprio ator que parece já vir com uma receita pronta para a interpretação. Faz-se necessária ao encenador quando transpuser do universo da escrita para a realização plástica imprimir uma harmonia e unidade quanto à interpretação e os elementos visuais para que se tenha uma boa concretização do espetáculo. A interpretação dos atores, em quase todo o espetáculo, beirava um exagero melodramático que empobrece a tragédia lorquiana.
A montagem do Arte & Fato se mostra tímida e ao mesmo tempo ousada na releitura de Bodas de Sangue, pois se reconhece a dificuldade de compreender os aspectos metafísicos e a transcendência do mundo fático, tal como corresponde ao gênero lírico. Sabemos também que a criação pessoal de cada artista deve integrar-se harmoniosamente na sua própria criação, dispondo de uma maior liberdade à criação do dramaturgo. Os personagens criados por Lorca são construídos em cenários que ambientam a pobreza do campo, a rivalidade familiar, a obsessão, a força sexual, o instinto do ser humano o que implica num jogo cênico que deve misturar a corporificação presente do ator e a relação com a realidade andaluza. O papel do ator é perceber sensorialmente sobre cada verso que está sendo falado. Devemos ter cuidado também com certas expressões, tal qual a escolha da condução “táxi” que extrapola a licença poética e soa também de forma gratuita ao espetáculo.
É imprescindível mencionar a admirável presença dos personagens não humanos, como a Lua e a Morte, que com seus figurinos peculiares e a leitura de Douglas conseguem extrair um caráter simultâneo ficcional e real do misticismo de Lorca. A luta de navalhas, os passos de cavalos, a força da paixão são pontos positivos que o encenador mostra-se fiel ao autor.
Num contexto mais alargado, Bodas de Sangue de Douglas Rodrigues invoca uma espécie de canto, de poema pelo qual a linguagem é utilizada através de meios estéticos o que enobrece a universalidade folclórica de um espanholismo essencial. Porém falta ao encenador, esculpir suas cenas para que estas caminhem a se convergir em puro sangue, ou seja, na mais plena poesia, pois só com suas palavras podemos tocar a alma do ser humano.
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